sábado, 1 de agosto de 2020

Interpretando o Brasil

Almeida Junior. O violeiro, 1899. Óleo sobre tela, 1,41 × 1,72 m. José Ferraz de Almeida Junior (1850-1899) introduziu temas inéditos na produção artística brasileira do século XIX, como o cotidiano e a vida dos habitantes rurais da região da pauliceia. Caipira picando fumo (1893) é uma de suas telas mais conhecidas. Em O violeiro, vemos uma dupla de caipiras cantando modas... Essas imagens dos caipiras foram se consolidando por meio de outras obras, como o livro Urupês – especifi camente o personagem Jeca Tatu –, de Monteiro Lobato, a famosa canção Tristeza do Jeca, de Angelino de Oliveira – ambos de 1918 –, e muitas outras expressões. O caipira, o sertanejo, o homem rural e mestiço do interior do Brasil foram as primeiras imagens sobre os brasileiros gestadas no início da república.

Refletindo sobre nós mesmos

Como nos ensinou o sociólogo alemão Nobert Elias, as sociedades podem ser compreendidas com base no exame de seus costumes. Observando as maneiras de se comportar ou os hábitos mais comuns de uma sociedade, podemos entender melhor como ela concebe a si mesma e como é percebida por quem está de fora. Neste capítulo veremos, com base na observação de nossos hábitos e costumes, como certos intelectuais delinearam interpretações fascinantes sobre nossa identidade nacional.

A lista dos que se colocaram o desafio de responder à pergunta “O que é o Brasil?” é longa e inclui sociólogos, advogados, literatos, antropólogos, geógrafos, cientistas políticos, entre outros. Alguns, como Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, partiram de uma reflexão sobre nossa constituição racial. Outros, como Monteiro Lobato e Roberto DaMatta, para citar apenas dois, foram descobrindo traços da identidade brasileira por meio da comparação com outras nações. Outros, ainda, tomaram como ponto de partida elementos geográficos. Euclides da Cunha, por exemplo, acreditava que não era possível entender o Brasil sem passar pelas categorias de litoral, e aqui vale lembrar o que nos diz a cientista social Lúcia Lippi Oliveira: a ideia de sertão, que aparece sob diferentes roupagens – às vezes como paraíso, outras como inferno ou purgatório –, é tão presente no imaginário social brasileiro que “o sertão pode e deve ser tomado como uma metáfora do Brasil”. Se o sertão é concebido como marca do atraso econômico social, é visto também como lugar de gente valente, capaz de resistir às maiores penúrias.

Quer concordemos, quer não com o que é dito por esses intelectuais, o exame de suas interpretações nos leva a refletir sobre nós mesmos, sobre quem somos e como chegamos a sê-lo. Vejamos, então, algumas dessas tentativas de desenhar o retrato do Brasil, começando por uma interpretação que se tornou famosa, ainda que algumas vezes mal compreendida.

 

Civilizados ou cordiais?

 

Galeria Jacques Ardies, São Paulo/ Constância Nery. Boa convivência, 2009. Oléo sobre tela, 64 × 88 cm.

Sérgio Buarque de Holanda figura sem dúvida entre os maiores intérpretes da nação. Seu livro Raízes do Brasil, publicado pela primeira vez em 1936, propõe um estudo sociológico da história brasileira com o objetivo de identificar nossas raízes socioculturais. Sérgio Buarque recua, então, até os tempos coloniais e constrói um panorama histórico de nossa estrutura política, econômica e social, influenciada pelo modelo português. Para o autor, a estrutura social de Portugal era marcada por uma “frouxidão organizacional” que levava a um padrão de convivência ao mesmo tempo mais flexível e mais instável. E isso, evidentemente, teve reflexos no Brasil.

 


Sérgio Buarque de Holanda, 1957.

Sérgio Buarque de Holanda

(São Paulo, 11 de julho de 1902 – São Paulo, 24 de abril de 1982)

 

Sérgio Buarque de Holanda foi um dos mais importantes pensadores brasileiros. Historiador, sociólogo, crítico literário e jornalista, dedicou-se a estudar a sociedade brasileira a partir de sua história, deixando textos que são grandes clássicos no nosso pensamento social. Apesar de graduado em direito, Sérgio Buarque trabalhou grande parte de sua vida na imprensa e na academia. Viveu em diversos países e cidades, mas foi na Alemanha, e mais especificamente em Berlim (onde viveu entre 1929 e 1930), que sofreu uma grande guinada intelectual, passando a investir mais intensamente numa interpretação sociológica do Brasil.

Em sua temporada na Alemanha, Sérgio Buarque entrou em contato com a escola alemã de sociologia e identificou-se com a obra de Max Weber, autor que desde então passou a exercer forte influência sobre seu pensamento. Essa influência pode ser facilmente percebida no livro que publicou logo após sua volta ao país, Raízes do Brasil (1936), em que analisa a colonização portuguesa e as conformações sociais que dela derivaram.

Sérgio Buarque de Holanda é, ao lado de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, um dos maiores intérpretes do Brasil e um dos mais eminentes intelectuais do país. Teve grande reconhecimento no exterior, e Raízes do Brasil foi traduzido para vários idiomas, entre eles inglês, espanhol, italiano, alemão, francês e japonês. Além desse trabalho, suas obras mais importantes são Monções (1945), Visão do paraíso (1959) e Do império à república (1972).

 

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque desenvolve uma ideia em torno da qual constrói sua interpretação sociológica: a do “homem cordial”. Este seria o brasileiro típico, fruto da colonização portuguesa e representante conceitual de nossa sociedade. Acontece que, como a palavra “cordial” na linguagem comum tem o sentido de afável, afetuoso, a ideia do “homem cordial” ficou associada à concepção do brasileiro como gentil, hospitaleiro, pacífico. E Sérgio Buarque foi muito criticado por essa maneira de ver os brasileiros. Era uma forma idealizada, que não correspondia às atitudes mais corriqueiras percebidas no convívio social. A polêmica indica que é preciso examinar mais de perto o sentido da expressão escolhida pelo autor – por que “cordial”?

“Cordial” provém da palavra latina cordialis, que significa “relativo ao coração”. Sérgio Buarque usa a expressão “homem cordial” para indicar um tipo de sujeito que age de acordo com um “fundo emotivo transbordante”, ou seja, com o coração, movido pela emoção. No lugar da formalidade, do respeito a leis universais, o homem cordial se vale da espontaneidade e aposta na lógica dos favores. É, assim, o exato oposto do homem que se orienta pelos códigos das boas maneiras e da civilidade, feitos para controlar e conter as emoções em nome de rituais e regras de convívio social. Por essa razão começamos com a referência a Norbert Elias. Ele foi o sociólogo que dedicou grande parte de seu investimento intelectual a compreender o papel sociológico das condutas, dos códigos de comportamento, daquilo que denominou “processo civilizador”.

A cordialidade, tal como entendida por Sérgio Buarque, sugere aversão à impessoalidade. Nós, brasileiros, estaríamos sempre buscando estabelecer intimidade, pondo os laços pessoais e os sentimentos como intermediários de nossas relações. Estamos acostumados a “fazer amizade”, “contar a vida”, “pedir conselho” a pessoas que nunca vimos antes enquanto aguardamos na fila do banco ou do supermercado. Não por acaso, estranhamos o que vemos como formalidade excessiva em outros povos, como os europeus. Achamos muito estranho quando um inglês recusa um abraço apertado como sinal de gratidão ou quando um sueco que acabamos de conhecer se constrange diante de perguntas sobre sua vida pessoal.

A cordialidade pode vir travestida de uma polidez aparente, superficial, que muitas vezes se apresenta como simpatia. De fato, a “simpatia brasileira” chega a ser uma “mercadoria” de grande valor no mercado turístico internacional. Daí derivam outros traços do estereótipo do brasileiro, como a generosidade, a alegria e a hospitalidade. Nosso “calor”, nossa receptividade são usados como mecanismos de aproximação, criação de intimidade e quebra da impessoalidade.

Exemplos de nossa “cordialidade”? Sérgio Buarque oferece uma longa lista. Ele destaca nossa mania de utilizar diminutivos (“inho”) como meio de familiarização com pessoas e coisas. Para tornar a espera menos aborrecida, pedimos que nosso interlocutor aguarde “cinco minutinhos”; se alguém nos pede um “favorzinho”, por maior que este seja, tendemos a atender de melhor grado. Esse emprego recorrente do diminutivo, assim como nossa aversão ao emprego dos verbos no modo imperativo (em geral, substituímos o “faça” por um “será que daria para você fazer”), chama a atenção dos estrangeiros que entram em contato com a língua portuguesa tal como falada no Brasil.

 

Diminutivos

[...]

No Brasil, usa-se o diminutivo principalmente em relação à comida. Nada nos desperta sentimentos tão carinhosos quanto uma boa comidinha.

- Mais um feijãozinho?

O feijãozinho passou dois dias borbulhando num daqueles caldeirões de antropófagos com capacidade para três missionários. Leva porcos inteiros, todos os miúdos e temperos conhecidos e, parece, um missionário. Mas a dona de casa o trata como um mingau de todos os dias.

- Mais um feijãozinho?

- Um pouquinho.

- E uma farofinha?

- Ao lado do arrozinho?

- Isso.

- E quem sabe mais uma cervejinha?

- Obrigadinho.

O diminutivo é também uma forma de disfarçar o nosso entusiasmo pelas grandes porções. E tem um efeito psicológico inegável. Você pode passar horas tomando “cervejinha” em cima de “cervejinha” sem nenhum dos efeitos que sofreria depois de apenas duas cervejas.

- E agora, um docinho.

E surge um tacho de ambrosia que é um porta-aviões.

 

VERISSIMO, Luis Fernando. Diminutivos. In: Comédia da vida privada: 101 crônicas escolhidas. Porto Alegre: LPM, 1994.

 

Mas Sérgio Buarque desce a detalhes curiosos. Destaca, ainda, a tendência brasileira à omissão do nome de família (sobrenome) no tratamento social. Enquanto nos Estados Unidos a professora do Ensino Fundamental é chamada por seus pequenos alunos de “Mrs. Smith”, aqui ela é “Tia Maria”. No campo religioso, essa informalidade também se faz presente. Segundo Sérgio Buarque, tratamos “os santos com uma intimidade quase desrespeitosa”. Assim, Santo Antônio, quando não arranja o noivo que a mocinha tanto pediu, tem sua imagem virada de cabeça para baixo. Quando São Benedito não atende às preces dos fiéis, corre o risco de ficar sem sua xícara de café, em geral posta ao lado de sua imagem todas as manhãs.

Podemos concluir, assim, que o “homem cordial” caracteriza-se fundamentalmente pela rejeição da distância e do formalismo nas relações sociais. Mas o caso brasileiro tem outra característica: as atitudes e princípios vigentes no universo íntimo da família acabaram por transbordar para a esfera pública. A consequência desse transbordamento é outro tema que aparece cotidianamente na imprensa e nos textos acadêmicos. Os políticos tratam os assuntos públicos como se fossem assuntos privados, tornando o Estado mais “pessoal” e menos “burocrático”. É nesse sentido que Sérgio Buarque de Holanda sugere a classificação do Estado brasileiro como “patrimonial”, numa clara alusão à diferenciação feita por Max Weber entre burocracia e patrimonialismo. Vamos entender melhor essa diferença.

Para Max Weber, a burocracia representava um aparato indispensável para o funcionamento da “máquina” administrativa do Estado. Numa sociedade em que impera a lógica legal-burocrática, o Estado é regido pela impessoalidade, pelo formalismo, pela previsibilidade e pela universalidade dos critérios. Numa sociedade organizada segundo o patrimonialismo, ao contrário, os homens públicos atuam na esfera estatal de acordo com regras e valores da esfera doméstica. Em vez de critérios universais e objetivos, levam em consideração os laços sentimentais e familiares. Os jornais noticiam com muita frequência aquilo que os cientistas sociais há mais tempo apontam como problemas a serem enfrentados na vida política brasileira: a prática da nomeação de funcionários públicos por critérios familiares, e não por critérios universais, por concurso, por exemplo. Ainda hoje lutamos contra a prática do nepotismo na distribuição dos cargos públicos. Sérgio Buarque diria que isso acontece porque, onde deveriam reinar os princípios da racionalidade e da impessoalidade, acabam por imperar critérios caros à cordialidade e à lógica dos favores. Há um ditado popular famoso que expressa bem o que nosso intérprete afirma: “Quem tem padrinho não morre pagão”. Quem tem um protetor consegue seu lugar independentemente de seu mérito profissional, sua capacidade comprovada, seu sucesso na competição com outros candidatos.

Vemos, portanto, que o conceito de homem cordial se presta à compreensão de uma sociedade marcada por uma confusão, por uma diferenciação precária entre o que é público e o que é privado. O homem cordial, tipo ideal do brasileiro e produto sociológico de nossa história, é o símbolo dessa confusão público/privado, o representante de uma sociedade baseada no personalismo e no patrimonialismo.

Ao contrário do que pode sugerir o sentido mais comum da expressão, o conceito de homem cordial representa um traço problemático de nossa nacionalidade. Ao escolhermos o personalismo em detrimento das regras impessoais, acabamos por ferir os princípios da horizontalidade e da igualdade, tão caros ao desenvolvimento da cidadania e da democracia. O patrimonialismo impede, segundo Sérgio Buarque, a consolidação de um Estado propriamente moderno e eficaz porque opera na lógica do “meus amigos em primeiro lugar”. Na sociedade do homem cordial, em que o espaço público é tomado como um prolongamento do espaço privado, fenômenos como o coronelismo, o apadrinhamento, o jeitinho e a corrupção põem os interesses pessoais acima do bem comum.

 

O “jeitinho brasileiro”

Todo brasileiro sabe o que é um “jeitinho”. Uma “carona” no ônibus, uma carteira de motorista “comprada”, ou uma alternativa “criativa” para se livrar de uma multa de trânsito: são inúmeras as situações do dia a dia que podemos identificar como exemplos de prática do famoso “jeitinho brasileiro”. Mas o que o jeitinho pode nos dizer sobre nossa sociedade? Será que ele pode ser objeto de análise social? A antropóloga Lívia Barbosa mostrou que sim. Em seu livro O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros (1992), a pesquisadora fez, por meio de uma série de entrevistas, uma verdadeira radiografia dessa prática social tão conhecida entre nós, mostrando que ela revela, acima de tudo, a dificuldade do brasileiro em lidar com o princípio básico da igualdade.

De acordo com a autora, o jeitinho é uma reação comum do brasileiro quando confrontado com um “não pode”, com um impedimento legal (por exemplo, a proibição de estacionar em determinados lugares). Também conhecido como “quebra-galho” ou “malandragem”, o jeitinho seria uma forma “especial” de resolver uma situação difícil. Uma das principais características do jeitinho é, segundo o estudo, o fato de ele ser aceito e praticado por todas as camadas sociais, dependendo, assim, da capacidade de cada um para conseguir dar uma solução “criativa” a uma impossibilidade formalmente imposta. O sucesso ou não do jeitinho depende, portanto, de características pessoais, como o carisma, a simpatia, o “jogo de cintura” etc. E como o jeitinho é visto pelos brasileiros? Lívia Barbosa afirma que a maioria dos entrevistados o situa entre o favor e a corrupção, e que a diferença entre esta última e o jeitinho está, sobretudo, no montante de dinheiro envolvido. É importante frisar que a pesquisa mostrou não haver distinção nítida entre essas três práticas, e que uma multa “aliviada” por um guarda pode, dependendo da situação, ser vista como um favor, um jeitinho ou um ato de corrupção. Sempre permeado por um discurso emocional, o jeitinho tem um inevitável apelo à simpatia e à comoção do interlocutor. Ele é, assim, uma forma peculiar de sobrepor os interesses pessoais aos princípios da igualdade garantida por lei, numa prática que deixa bastante clara a relação complexa do brasileiro com os limites entre o mundo do privado e o do público.

 

Sérgio Buarque de Holanda acreditava que a cordialidade seria superada com o avanço da urbanização, que levaria ao progressivo desenvolvimento da impessoalidade na vida pública. A urbanização e a industrialização seriam um golpe fatal nas relações calcadas na cordialidade, deixando esse traço histórico-cultural esquecido num passado de arcaísmo e ruralismo. Pensemos sobre o Brasil de hoje. Podemos dizer que a “aposta” de Sérgio Buarque se cumpriu?


Bibliografia

Tempos modernos, tempos de sociologia: ensino médio: volume único / Helena Bomeny... [et al.] (coordenação). — 2. ed. — São Paulo: Editora do Brasil, 2013.


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