domingo, 14 de junho de 2020

Sociedades Indígenas e o Mundo Contemporâneo

Desde o fim do século XIX, a própria Antropologia se dedicou a questionar os modelos evolucionistas. O principal recurso para a construção dessa crítica foi o conceito de cultura. Veremos como esse conceito possibilitou o combate às hierarquias e preconceitos étnicos originados das teorias evolucionistas. Por ora, vamos conhecer um “mecanismo” intelectual importante no entendimento de experiências de vida muito distintas das nossas: o combate ao etnocentrismo.

Cultura

Conjunto de práticas e hábitos produzido por qualquer sociedade, desde as técnicas de subsistência até as preferências estéticas, passando por religião, economia, medicina, etc. Veremos no capítulo 2 várias definições do conceito de cultura ao longo dos séculos XX e XXI.



A partir do século XX, as teorias evolucionistas passaram a ser vistas pelos antropólogos como etnocêntricas, isto é, construídas com base em critérios válidos para quem as formulou. Afirmar que a evolução tecnológica é um parâmetro para avaliar a evolução das sociedades só poderia ocorrer em uma sociedade cuja evolução tecnológica é muito valorizada. Dificilmente uma sociedade organizada em outros termos escolheria esse critério. Ou seja, quando analisamos outras sociedades por meio de critérios próprios da nossa, estamos sendo etnocêntricos. E isso significa que não estamos realmente olhando para outras sociedades, mas apenas procurando nelas aquilo que reconhecemos em nós como fundamental. Para desfazer a ideia do suposto primitivismo das populações não ocidentais, é necessário um olhar não etnocêntrico, que reconheça uma complexidade que tenha sentido e significado no interior dessas sociedades.

Do final do século XIX até meados do século XX, antropólogos se dedicaram a documentar a vida indígena em vários lugares do mundo com uma preocupação generalizada: a de que os povos indígenas estavam “acabando”. Havia a convicção de que o avanço do sistema capitalista levaria à extinção dessas populações. Alguns acreditavam que isso aconteceria inevitavelmente, como um fator natural da evolução social. Outros simplesmente constatavam que o capitalismo impedia aquelas sociedades de continuar a se reproduzir como vinham fazendo tradicionalmente.

E como isso acontecia? Com a expansão gradual do controle e invasão de terras indígenas. Para tomar um exemplo brasileiro, o interesse pelas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas levou aos maiores abusos. O antropólogo brasileiro Mércio Pereira Gomes (1950-), em seu livro Os índios e o Brasil (Vozes, 1988), cita o caso dos índios Canela Fina, na Vila de Caxias, no sul do Maranhão, que por volta de 1816 receberam como “presente” de fazendeiros interessados em suas terras roupas infectadas com varíola, que causaram o espalhamento do contágio e grande morticínio.

 

Em 6/11/2012, em frente ao Palácio do Planalto, indígenas de nove etnias vindos do Maranhão e do Amazonas pediram a revogação da Portaria 303 da Advocacia-Geral da União. Essa portaria estendeu a todas as terras indígenas do país as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, consideradas inconstitucionais por grupos indígenas e vários especialistas./ Antônio Cruz/ABr/Radiobrás

Apesar dos números e relatos que demonstram a dizimação de grupos indígenas durante os séculos pós-conquista colonial, as nações indígenas praticaram ações e estratégias de resistência física e cultural. Ao longo do século XX, muitas delas se mobilizaram para defender seus direitos. O fim do século XX testemunhou uma revitalização das populações indígenas, embora em muitos lugares do mundo os processos de opressão permaneçam.

Uma questão crucial para as populações indígenas da atualidade é sua relação com a sociedade capitalista. Essas populações não recusam o que chamamos de tecnologia, e em muitos casos se valem dela para expressar seus pontos de vista. Muitos indígenas produzem vídeos para registrar suas cerimônias, gravar suas narrativas, expressar seus modos de ver o mundo. O uso de tecnologia não os torna menos indígenas, ao contrário do que alguns imaginam.

 

 VOCÊ JÁ PENSOU NISTO?

 

Você já ouviu dizer que “índio de verdade” não usa roupas nem tecnologias ou coisas semelhantes? Provavelmente sim, pois esse discurso é muito comum, já que legitima a retirada de direitos desses indígenas. Quando por exemplo um fazendeiro quer desqualificar reivindicações dos indígenas sobre terras que ocupa, afirma que eles não são mais indígenas porque usam roupas, ferramentas, etc. Talvez você não perceba quanto essa afirmação é ideológica: as sociedades capitalistas criam imagens dos indígenas como primitivos, se apressam em tentar civilizá-los e, assim que eles adotam práticas ocidentais, argumentam que eles não são mais indígenas e portanto não têm direito à terra, por exemplo.

 

 

Ideologia

Conjunto de ideias próprias de um grupo, de uma época, e que traduzem um contexto histórico.



 Na aldeia Ipatse, no Parque Indígena do Xingu, integrantes do Coletivo Kuikuro de Cinema entrevistam visitante. Foto de 2007. / Pedro Biondi/ABr/Radiobrás

O uso de tecnologias não impede que os indígenas reproduzam seus modos de viver. Alguns antropólogos, como o norte-americano Marshall Sahlins (1930-), afirmam justamente o contrário: que populações indígenas se utilizam de “coisas” da sociedade ocidental conforme suas próprias regras e de forma a fortalecer seus próprios meios de ver o mundo. Nós também “emprestamos” práticas, hábitos e ideias produzidos em outros lugares do mundo e nem por isso deixamos de ser brasileiros. Quando assistimos a um filme de Hollywood, por exemplo, apreciamos uma série de práticas, hábitos e ideias que são estrangeiros para nós. Mas isso não nos faz menos brasileiros. Quando assistimos a uma partida de futebol, estamos vendo um jogo inventado na Inglaterra, o que não impediu a criação de um futebol brasileiro. Por que, então, usar roupas e motores de popa tornaria os indígenas menos indígenas?

 

Mitos, narrativas e estruturalismo

Vimos que nossa ideia das sociedades indígenas é bastante deturpada porque elas são diferentes demais da nossa própria sociedade e essa diferença parece uma barreira intransponível. Mas a Antropologia, desde o começo do século XX, vem procurando construir uma ponte, dando sentido à experiência das populações indígenas (e de outras populações, como as camponesas, as tribos urbanas, as elites, os grupos religiosos, os imigrantes, etc.). Quando “atravessamos a ponte”, deparamos com mundos cujas complexidade e sofisticação estavam como que escondidas por nossos preconceitos. Ajudar a enxergar essa complexidade é uma das tarefas da Antropologia, e um dos efeitos dela é desestabilizar aquelas certezas evolutivas produzidas no século XIX e até hoje presentes em nossa vida.

 

Curare, cipó venenoso  para flecha, Floresta Amazônica, Manaus (AM), 2008.


Indígena com zarabatana na Aldeia Rouxinol, habitada por grupos Barasano e Tuiuca, às margens do igarapé Tarumã-Açu. Manaus (AM), 2008. / Fotos: Fabio Colombini/Acervo do fotógrafo

Invariavelmente, diante da riqueza de uma narrativa mitológica indígena, que nada deve ao pensamento mitológico grego, por exemplo, ou diante da sofisticação artística de muitos artefatos indígenas, ou ainda diante de sistemas de parentesco tão complexos que seria preciso construir algoritmos para entendê-los, chegamos a uma única conclusão: qualquer tentativa de estabelecer uma linha de evolução entre sociedades é equivocada.

Tomemos como exemplo o trabalho do francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), o mais célebre antropólogo do século XX, cuja obra influenciou e continua a influenciar o pensamento social contemporâneo.

Lévi-Strauss desenvolveu um método de análise que chamou de estruturalista e fez um mergulho pela enorme complexidade dos mitos provenientes de diversas populações, do sul até o norte das Américas, revelando por meio deles o que denominava pensamento ameríndio.

Para esse autor, os mitos demonstram um pensamento sofisticado e complexo. Tratam de oposições recorrentes — entre o nu e o vestido, entre o cru e o cozido, entre discrição e excesso, entre respeito e desrespeito, etc. — e promovem formas de lidar com a passagem de um estado de natureza para o de cultura. Segundo Lévi-Strauss, os mitos traduzem preocupações fundamentais das populações que os criam e fazem uma distinção entre natureza e cultura. Essas populações estariam empenhadas em se separar da natureza, aspecto que o olhar etnocêntrico tem dificuldade de entender.

A essência de uma teoria complexa como o estruturalismo, que pretende demonstrar que o pensamento humano se organiza em torno de oposições (alto e baixo, fora e dentro, quente e frio, etc.) deve muito ao próprio pensamento ameríndio.

É como se Lévi-Strauss pensasse o mito a partir do pensamento dos nativos das Américas. O estruturalismo, um método quase matemático, foi aplicado também ao estudo do parentesco, buscando reduzir a multiplicidade de sistemas e chegar a um conjunto de sistemas genéricos, que serviriam de modelos ou padrões para todas as variedades de parentesco. 

 

PERFIL

 

Claude Lévi-Strauss

Arquivo/UCS/MUN, Canadá. Foto de 1965.

Nascido em 1908 na Bélgica, de família judia, estudou em Paris, graduando-se em Filosofia em 1931. Depois de lecionar por dois anos na França, integrou a missão francesa na recém-criada Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou Sociologia. Entre 1935 e 1939 viveu no Brasil, realizando expedições etnográficas que viriam a influenciar toda a sua carreira, assim como a de muitos intelectuais brasileiros.

 

Exilado nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi professor nesse país nos anos 1950, estabelecendo laços com outros antropólogos, entre eles Franz Boas e Robert Lowie. De volta à França, assumiu, em 1959, a cadeira de Antropologia Social no Collège de France, onde permaneceu até se aposentar, em 1982.

Sua obra é considerada de enorme importância, tanto pela criação da chamada Antropologia estruturalista quanto pela riqueza e erudição de suas análises. Vários de seus livros são clássicos da Antropologia e das Ciências Humanas, tais como: Estruturas elementares do parentesco (1949), Tristes trópicos (1955), Antropologia estrutural (1958), O pensamento selvagem (1962) e Totemismo hoje (1962). Lévi-Strauss produziu ainda um trabalho monumental de análise dos mitos das populações indígenas das Américas, dedicando-lhes mais de duas décadas de pesquisa (entre 1964 e 1991). O resultado foi publicado como as “grandes mitológicas” em quatro volumes: O cru e o cozido, Do mel às cinzas, Origem dos modos à mesa e O homem nu. Em seguida, publicou as “pequenas mitológicas”: A via das máscaras, Oleira ciumenta e Histórias de lince. Faleceu em Paris, em 2009, alguns meses antes de completar 101 anos.

 

Também a arte foi objeto da reflexão sistemática de Lévi-Strauss, e, nesse caso, a sensibilidade artística das populações ameríndias foi fundamental para sua análise. Para saber mais sobre a arte indígena, acesse o OED indicado ao lado.

 

Populações indígenas no Brasil

Para concluir este capítulo, dedicado a apresentar um pouco do pensamento sobre as populações consideradas “diferentes”, desde o evolucionismo do século XIX até uma visão antropológica atual, vamos rever um pouco da história dos indígenas no Brasil. Antes da chegada dos portugueses, o que viria a ser o Brasil era uma área densamente povoada por uma enorme diversidade de populações indígenas. Os processos levados a cabo por esse contato resultaram em grandes mudanças, como o avanço da mortalidade, a desestruturação de sociedades e sua dispersão, grandes deslocamentos, que por sua vez produziram também conflitos entre populações indígenas, ajuntamentos de remanescentes de diferentes etnias.

Remanescentes

Neste contexto, membros de populações indígenas que viram suas sociedades quase completamente dizimadas. O termo também é utilizado para designar os quilombolas, descendentes de africanos escravizados que se refugiaram em quilombos.


 

Etnia

População ou grupo social distinto de outros grupos por sua especificidade cultural e linguística e por compartilhar história e origem comuns.


 

A história das populações indígenas no Brasil desmente a imagem fantasiosa de povos cujo modo de vida permaneceu o mesmo desde a chegada dos europeus ao continente americano. Estudos antropológicos, arqueológicos e linguísticos indicam intensos processos de transformação, adaptação e mudança entre as populações indígenas, processos dos quais temos apenas alguns vislumbres, já que as fontes para o estudo são raras ou inexistentes. Segundo a antropóloga luso-brasileira Manuela Carneiro da Cunha (1943-), à época da chegada (que podemos qualificar como invasão) dos portugueses ao território que viria a ser o Brasil, havia aqui algo entre 1 e 8,5 milhões de indígenas (as estimativas são muito imprecisas). Em 150 anos, acredita-se que até 95% dessa população tenha sido dizimada, seja por doenças espalhadas pelos europeus, seja pelo confronto direto, seja por guerras decorrentes dos deslocamentos provocados pela colonização ou ainda pelos rigores do trabalho forçado.

No início da colonização, os portugueses mantiveram contatos relativamente amigáveis com os indígenas, mas logo passaram a escravizá-los, obrigando-os a trabalhar. Entretanto, os indígenas foram também aliados dos colonizadores nas lutas para conter ou expulsar franceses, holandeses e espanhóis, como uma “fronteira viva”, segundo afirma a antropóloga brasileira Nádia Farage (1959-). Entre os séculos XVII e XVIII, prevaleceu o modelo de catequização jesuítica, o que gerou conflitos em torno do trabalho forçado e disputas políticas com a Coroa portuguesa. Após a expulsão dos jesuítas em 1759, não havia vozes em defesa dos indígenas nem contrários à ocupação de suas terras.

Catequizar

Instruir em uma doutrina religiosa, ensinar um conjunto de valores relativos a alguma religião.


 

No século XIX, com o avanço da escravidão africana, o foco mudou: nesse momento interessavam mais as terras do que o trabalho dos indígenas. Após séculos de opressão, em 1910 foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que em 1967 foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O Estado implantou uma política indigenista voltada para o “progresso”, pela qual os índios eram vistos como empecilho. Indígenas eram contatados para serem realocados, e a seguir vinha o “progresso” com estradas, tratores, cidades. Ao mesmo tempo, grandes empreendimentos de catequização, como o dos religiosos salesianos no alto Rio Negro, continuaram a atuar, com base em aldeamentos, abandono de crenças tradicionais, estudo formal e catequese.

Aldeamento

Povoação de indígenas dirigida por missionários ou por autoridades leigas. Em geral, os aldeamentos eram formados por indígenas de etnias diferentes.


 

Na década de 1980 consolidou-se um discurso militarista contra os indígenas, vistos como ameaça à segurança nacional por estarem em zonas fronteiriças. Entretanto, a Constituição de 1988 marcou uma virada na percepção dos indígenas: foram deixadas de lado as iniciativas de “civilizá-los” e formulados artigos que reconhecem o direito de suas populações à posse da terra e à conservação de seus costumes e tradições. Hoje, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), há no Brasil cerca de 240 povos indígenas, falantes de mais de 180 línguas diferentes. De acordo com dados do Censo 2010 do IBGE, somam 817 963 pessoas, das quais 502 783 vivem em áreas rurais. Correspondem a 0,42% da população brasileira.

Instituto Socioambiental (ISA)

Organização sem fins lucrativos, fundada em 1994, dedicada a “defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos”.


 

Em fotografi a de 1972, construção da rodovia Transamazônica no trecho iniciado em Altamira, Pará./ Solano José/Agência Estado

 

 PARA SABER MAIS

 

Companhia de Jesus

 

A história da Companhia de Jesus no Brasil teve início em 1549, com a chegada dos primeiros jesuítas a Salvador, Bahia, onde fundaram um colégio e iniciaram a catequese dos índios. Na segunda metade do século XVIII, os jesuítas foram expulsos de Portugal e de suas colônias pelo Marquês

de Pombal, ministro do rei dom José I. Além de confiscar as propriedades da Igreja na colônia, Pombal pretendia ganhar o controle político-econômico das regiões administradas pelos jesuítas. Hoje, a ordem mantém colégios e universidades em várias regiões do país.

 

 

Observe no mapa a seguir a situação das terras indígenas no Brasil atual. Considerando que esse mapa representa apenas as terras pertencentes a um conjunto de fragmentos de toda a diversidade indígena que já povoou o território, podemos ter uma ideia de quanto essas populações sofreram com o processo de modernização da sociedade brasileira. Não é para menos que os indígenas vêm se organizando, reivindicando direitos com base em sua presença ancestral no território que hoje chamamos de Brasil.

 Terras indígenas no Brasil

Fonte: Povos indígenas no Brasil: 2006/2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011./ Portal de Mapas/Arquivo da editora

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