Desde o fim do século XIX, a própria Antropologia se
dedicou a questionar os modelos evolucionistas. O principal recurso para a
construção dessa crítica foi o conceito de cultura.
Veremos como esse conceito possibilitou o combate às hierarquias
e preconceitos étnicos originados das teorias evolucionistas. Por ora, vamos
conhecer um “mecanismo” intelectual importante no entendimento de experiências de
vida muito distintas das nossas: o combate ao etnocentrismo.
Cultura Conjunto de práticas e hábitos produzido por qualquer sociedade, desde as técnicas de subsistência até as preferências estéticas, passando por religião, economia, medicina, etc. Veremos no capítulo 2 várias definições do conceito de cultura ao longo dos séculos XX e XXI. |
A partir do século XX, as teorias evolucionistas
passaram a ser vistas pelos antropólogos como etnocêntricas, isto é,
construídas com base em critérios válidos para quem as formulou. Afirmar que a
evolução tecnológica é um parâmetro para avaliar a evolução das sociedades só
poderia ocorrer em uma sociedade cuja evolução tecnológica é muito valorizada.
Dificilmente uma sociedade organizada em outros termos escolheria esse
critério. Ou seja, quando analisamos outras sociedades por meio de critérios
próprios da nossa, estamos sendo etnocêntricos. E isso significa que não
estamos realmente olhando para outras sociedades, mas apenas procurando nelas
aquilo que reconhecemos em nós como fundamental. Para desfazer a ideia do
suposto primitivismo das populações não ocidentais, é necessário um olhar não
etnocêntrico, que reconheça uma complexidade que tenha sentido e significado no
interior dessas sociedades.
Do final do século XIX até meados do século XX,
antropólogos se dedicaram a documentar a vida indígena em vários lugares do
mundo com uma preocupação generalizada: a de que os povos indígenas estavam
“acabando”. Havia a convicção de que o avanço do sistema capitalista levaria à
extinção dessas populações. Alguns acreditavam que isso aconteceria
inevitavelmente, como um fator natural da evolução social. Outros simplesmente
constatavam que o capitalismo impedia aquelas sociedades de continuar a se
reproduzir como vinham fazendo tradicionalmente.
E como isso acontecia? Com a expansão gradual do
controle e invasão de terras indígenas. Para tomar um exemplo brasileiro, o
interesse pelas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas levou aos
maiores abusos. O antropólogo brasileiro Mércio Pereira Gomes (1950-), em seu
livro Os índios e o Brasil (Vozes, 1988), cita o caso dos índios Canela
Fina, na Vila de Caxias, no sul do Maranhão, que por volta de 1816 receberam
como “presente” de fazendeiros interessados em suas terras roupas infectadas
com varíola, que causaram o espalhamento do contágio e grande morticínio.
Apesar dos números e relatos que demonstram a
dizimação de grupos indígenas durante os séculos pós-conquista colonial, as
nações indígenas praticaram ações e estratégias de resistência física e
cultural. Ao longo do século XX, muitas delas se mobilizaram para defender seus
direitos. O fim do século XX testemunhou uma revitalização das populações
indígenas, embora em muitos lugares do mundo os processos de opressão permaneçam.
Uma questão crucial para as populações indígenas da
atualidade é sua relação com a sociedade capitalista. Essas populações não
recusam o que chamamos de tecnologia, e em muitos casos se valem dela para
expressar seus pontos de vista. Muitos indígenas produzem vídeos para registrar
suas cerimônias, gravar suas narrativas, expressar seus modos de ver o mundo. O
uso de tecnologia não os torna menos indígenas, ao contrário do que alguns
imaginam.
VOCÊ JÁ PENSOU NISTO?
Você já ouviu dizer que “índio de verdade” não usa roupas nem
tecnologias ou coisas semelhantes? Provavelmente sim, pois esse discurso é muito
comum, já que legitima a retirada de direitos desses indígenas. Quando por
exemplo um fazendeiro quer desqualificar reivindicações dos indígenas sobre
terras que ocupa, afirma que eles não são mais indígenas porque usam roupas,
ferramentas, etc. Talvez você não perceba quanto essa afirmação é ideológica: as sociedades capitalistas
criam imagens dos indígenas como primitivos, se apressam em tentar civilizá-los
e, assim que eles adotam práticas ocidentais, argumentam que eles não são
mais indígenas e portanto não têm direito à terra, por exemplo. |
Ideologia Conjunto de ideias próprias de um grupo, de uma época, e que traduzem um contexto histórico. |
O uso de tecnologias não impede que os indígenas
reproduzam seus modos de viver. Alguns antropólogos, como o norte-americano
Marshall Sahlins (1930-), afirmam justamente o contrário: que populações
indígenas se utilizam de “coisas” da sociedade ocidental conforme suas próprias
regras e de forma a fortalecer seus próprios meios de ver o mundo. Nós também
“emprestamos” práticas, hábitos e ideias produzidos em outros lugares do mundo
e nem por isso deixamos de ser brasileiros. Quando assistimos a um filme de
Hollywood, por exemplo, apreciamos uma série de práticas, hábitos e ideias que
são estrangeiros para nós. Mas isso não nos faz menos brasileiros. Quando
assistimos a uma partida de futebol, estamos vendo um jogo inventado na
Inglaterra, o que não impediu a criação de um futebol brasileiro. Por que,
então, usar roupas e motores de popa tornaria os indígenas menos indígenas?
Mitos, narrativas e
estruturalismo
Vimos que nossa ideia das sociedades
indígenas é bastante deturpada porque elas são diferentes demais da nossa
própria sociedade e essa diferença parece uma barreira intransponível. Mas a
Antropologia, desde o começo do século XX, vem procurando construir uma ponte,
dando sentido à experiência das populações indígenas (e de outras populações,
como as camponesas, as tribos urbanas, as elites, os grupos religiosos, os
imigrantes, etc.). Quando “atravessamos a ponte”, deparamos com mundos cujas
complexidade e sofisticação estavam como que escondidas por nossos
preconceitos. Ajudar a enxergar essa complexidade é uma das tarefas da
Antropologia, e um dos efeitos dela é desestabilizar aquelas certezas
evolutivas produzidas no século XIX e até hoje presentes em nossa vida.
Invariavelmente, diante da riqueza de uma narrativa mitológica indígena, que nada deve ao pensamento mitológico grego, por exemplo, ou diante da sofisticação artística de muitos artefatos indígenas, ou ainda diante de sistemas de parentesco tão complexos que seria preciso construir algoritmos para entendê-los, chegamos a uma única conclusão: qualquer tentativa de estabelecer uma linha de evolução entre sociedades é equivocada.
Tomemos como exemplo o trabalho do
francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), o mais célebre antropólogo do século
XX, cuja obra influenciou e continua a influenciar o pensamento social
contemporâneo.
Lévi-Strauss desenvolveu um método de
análise que chamou de estruturalista e fez um mergulho pela enorme complexidade
dos mitos provenientes de diversas populações, do sul até o norte das Américas,
revelando por meio deles o que denominava pensamento ameríndio.
Para esse autor, os mitos demonstram
um pensamento sofisticado e complexo. Tratam de oposições recorrentes — entre o
nu e o vestido, entre o cru e o cozido, entre discrição e excesso, entre
respeito e desrespeito, etc. — e promovem formas de lidar com a passagem de um
estado de natureza para o de cultura. Segundo Lévi-Strauss, os mitos traduzem
preocupações fundamentais das populações que os criam e fazem uma distinção
entre natureza e cultura. Essas populações estariam empenhadas em se separar da
natureza, aspecto que o olhar etnocêntrico tem dificuldade de entender.
A essência de uma teoria complexa como
o estruturalismo, que pretende demonstrar que o pensamento humano se organiza
em torno de oposições (alto e baixo, fora e dentro, quente e frio, etc.) deve
muito ao próprio pensamento ameríndio.
É como se Lévi-Strauss pensasse o mito a partir do pensamento dos nativos das Américas. O estruturalismo, um método quase matemático, foi aplicado também ao estudo do parentesco, buscando reduzir a multiplicidade de sistemas e chegar a um conjunto de sistemas genéricos, que serviriam de modelos ou padrões para todas as variedades de parentesco.
PERFIL
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Também a arte foi objeto da reflexão
sistemática de Lévi-Strauss, e, nesse caso, a sensibilidade artística das
populações ameríndias foi fundamental para sua análise. Para saber mais sobre a
arte indígena, acesse o OED indicado ao lado.
Populações indígenas
no Brasil
Para concluir este capítulo, dedicado
a apresentar um pouco do pensamento sobre as populações consideradas
“diferentes”, desde o evolucionismo do século XIX até uma visão antropológica
atual, vamos rever um pouco da história dos indígenas no Brasil. Antes da
chegada dos portugueses, o que viria a ser o Brasil era uma área densamente
povoada por uma enorme diversidade de populações indígenas. Os processos
levados a cabo por esse contato resultaram em grandes mudanças, como o avanço
da mortalidade, a desestruturação de sociedades e sua dispersão, grandes
deslocamentos, que por sua vez produziram também conflitos entre populações
indígenas, ajuntamentos de remanescentes
de diferentes etnias.
Remanescentes Neste contexto, membros de populações indígenas que viram suas sociedades quase completamente dizimadas. O termo também é utilizado para designar os quilombolas, descendentes de africanos escravizados que se refugiaram em quilombos. |
Etnia População ou grupo social distinto
de outros grupos por sua especificidade cultural e linguística e por
compartilhar história e origem comuns. |
A história das populações indígenas no
Brasil desmente a imagem fantasiosa de povos cujo modo de vida permaneceu o
mesmo desde a chegada dos europeus ao continente americano. Estudos
antropológicos, arqueológicos e linguísticos indicam intensos processos de
transformação, adaptação e mudança entre as populações indígenas, processos dos
quais temos apenas alguns vislumbres, já que as fontes para o estudo são raras
ou inexistentes. Segundo a antropóloga luso-brasileira Manuela Carneiro da
Cunha (1943-), à época da chegada (que podemos qualificar como invasão) dos
portugueses ao território que viria a ser o Brasil, havia aqui algo entre 1 e
8,5 milhões de indígenas (as estimativas são muito imprecisas). Em 150 anos,
acredita-se que até 95% dessa população tenha sido dizimada, seja por doenças
espalhadas pelos europeus, seja pelo confronto direto, seja por guerras decorrentes
dos deslocamentos provocados pela colonização ou ainda pelos rigores do
trabalho forçado.
No início da colonização, os
portugueses mantiveram contatos relativamente amigáveis com os indígenas, mas
logo passaram a escravizá-los, obrigando-os a trabalhar. Entretanto, os
indígenas foram também aliados dos colonizadores nas lutas para conter ou
expulsar franceses, holandeses e espanhóis, como uma “fronteira viva”, segundo
afirma a antropóloga brasileira Nádia Farage (1959-). Entre os séculos XVII e
XVIII, prevaleceu o modelo de catequização jesuítica, o
que gerou conflitos em torno do trabalho forçado e disputas políticas com a
Coroa portuguesa. Após a expulsão dos jesuítas em 1759, não havia vozes em
defesa dos indígenas nem contrários à ocupação de suas terras.
Catequizar Instruir em uma doutrina religiosa, ensinar
um conjunto de valores relativos a alguma religião. |
No século XIX, com o avanço da
escravidão africana, o foco mudou: nesse momento interessavam mais as terras do
que o trabalho dos indígenas. Após séculos de opressão, em 1910 foi criado o
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que em 1967 foi substituído pela Fundação
Nacional do Índio (Funai). O Estado implantou uma política indigenista voltada
para o “progresso”, pela qual os índios eram vistos como empecilho. Indígenas
eram contatados para serem realocados, e a seguir vinha o “progresso” com
estradas, tratores, cidades. Ao mesmo tempo, grandes empreendimentos de
catequização, como o dos religiosos salesianos no alto Rio Negro, continuaram a
atuar, com base em aldeamentos,
abandono de crenças tradicionais, estudo formal e catequese.
Aldeamento Povoação de indígenas dirigida por
missionários ou por autoridades leigas. Em geral, os aldeamentos eram
formados por indígenas de etnias diferentes. |
Na década de 1980 consolidou-se um
discurso militarista contra os indígenas, vistos como ameaça à segurança
nacional por estarem em zonas fronteiriças. Entretanto, a Constituição de 1988
marcou uma virada na percepção dos indígenas: foram deixadas de lado as
iniciativas de “civilizá-los” e formulados artigos que reconhecem o direito de
suas populações à posse da terra e à conservação de seus costumes e tradições.
Hoje, segundo o Instituto Socioambiental
(ISA), há no Brasil cerca de 240 povos indígenas, falantes de mais
de 180 línguas diferentes. De acordo com dados do Censo 2010 do IBGE, somam 817
963 pessoas, das quais 502 783 vivem em áreas rurais. Correspondem a 0,42% da
população brasileira.
Instituto Socioambiental (ISA) Organização sem fins lucrativos,
fundada em 1994, dedicada a “defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos
relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e
dos povos”. |
PARA SABER MAIS
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