segunda-feira, 15 de junho de 2020

Ampliando horizontes e descobrindo o “outro”

Com o fim de eliminar a intermediação e baratear produtos, sobretudo as especiarias, alguns países da Europa passaram a investir na descoberta de novas rotas de acesso direto ao Oriente. Foi o caso de Portugal, que estava determinado a descobrir uma passagem marítima para as Índias e desenvolveu técnicas de navegação avançadas. Isso possibilitou a Vasco da Gama, no final do século XV, partir rumo às Índias, contornar o continente africano, e retornar a seu país como herói, com naus carregadas de especiarias. Fora dada a partida para a Era das Grandes Navegações. A Coroa espanhola também lançou-se ao mar em busca de uma rota que levasse ao Oriente, porém, seguindo em direção ao oeste. À frente do empreendimento, Cristóvão Colombo deparou-se com um imprevisto: o Novo Mundo.


Outra mudança importante no início dos “tempos modernos” foi, portanto, a ampliação dos horizontes geográficos dos europeus por meio da conquista de novos mares e novos continentes. À expansão marítima, liderada inicialmente por Portugal e Espanha, seguiu-se a expansão colonial, que, a partir do século XVII, contou também com ingleses, franceses e holandeses.

 

D. K. Bonatti. Representação do primeiro encontro entre Cristóvão Colombo e nativos americanos, 1827. Litografia colorida à mão./ Coleção particular

A chegada dos europeus ao continente americano, no século XV, não apenas levou à descoberta de novas fontes de riqueza, como também deu início a uma série de encontros fortemente marcados pelo estranhamento. Ao se depararem com povos cujos idiomas, hábitos e costumes eram completamente diferentes dos seus, os europeus passaram a produzir narrativas exóticas do Novo Mundo, vendo nos habitantes nativos verdadeiros selvagens. Diante dos muitos relatos que asseguravam o atraso e a inferioridade dos povos americanos, o filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592), em seu livro Ensaios, delineou uma perspectiva que punha em dúvida a razão e a sensibilidade de seus contemporâneos, questionando as certezas que sustentavam a tese da superioridade europeia. O capítulo “Dos canibais”, por exemplo, no qual o autor fala da perplexidade causada pela descoberta de índios antropófagos (os tupinambás), ressalta a variedade dos costumes humanos, sugerindo que o olhar de estranhamento sobre os nativos poderia produzir uma reflexão sobre a própria sociedade europeia:

[…] não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. […] Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade [o canibalismo], mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado. […] Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios I. São Paulo: abril Cultural, 1978. p. 108. (Coleção Os pensadores).

Séculos mais tarde, o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov (1939) retomou aquela discussão em seu conhecido livro A conquista da América: a questão do outro (de 1984). A chegada dos europeus à América provocou o que Todorov diz ser “o encontro mais surpreendente de nossa história”. Foi do impacto desse encontro que o filósofo se voltou para o que definiu como a “descoberta que o eu faz do outro”. Todorov encontrou, nos relatos de viajantes que acompanharam as primeiras expedições ao Novo Mundo, as estratégias dos europeus para possibilitar a comunicação com os povos nativos. Os relatos apaixonados dos viajantes mostraram a ele como se construiu o conceito de inferioridade dos indígenas em comparação com os que ali aportavam. A justificativa de inferioridade validou aquilo que o filósofo classificou como “o maior genocídio da história da humanidade”. “Colombo descobriu a América, mas não os americanos”, defende Todorov. E traz em sua análise um tema recorrente nas Ciências Sociais: associar a diferença à inferioridade e a semelhança à superioridade são práticas comuns, dada a dificuldade que os homens têm, diz Todorov, de “perceber a identidade humana dos outros, isto é, admiti-los, ao mesmo tempo, como iguais e como diferentes”. Ser diferente não é ser inferior – esta é a mensagem mais importante deixada pela análise de Todorov daquele que foi considerado um dos mais impactantes encontros entre culturas de que temos registro.

O Século das Luzes e as grandes revoluções modernas

Avancemos agora até o século XVII: se é verdade que àquela altura os efeitos da Revolução Comercial já se faziam sentir, as cidades já estavam bem mais desenvolvidas, a Revolução Científica seguia seu curso e as fronteiras do mundo conhecido eram bem mais extensas, também é certo que nem tudo o que existia antes havia “desaparecido”.

A maioria das pessoas continuava a viver no campo, a Igreja continuava a defender seus princípios e suas interdições, e as monarquias absolutas sustentavam a ideia de que os homens nasciam desiguais – ou seja, de que a sociedade estava presa a uma estrutura hierárquica rigidamente definida. Na última década do século, porém, percebeu-se que um novo “Renascimento” estava começando. O movimento intelectual que se iniciou então, e desabrochou no século seguinte, foi chamado de Iluminismo, e é considerado pelos estudiosos o primeiro grande passo na construção de uma cultura burguesa.


Burguesia

A origem da palavra remonta ao século XII: burguês era o habitante do burgo, povoação formada em torno de um castelo ou mosteiro fortificado. Burguesia era o conjunto de mercadores e artesãos que habitavam as cidades e desfrutavam de direitos especiais dentro da sociedade feudal. A partir do século XVIII, a palavra passou, gradualmente, a designar os empregadores dos ramos da manufatura, do comércio e das finanças, que se consolidavam como nova classe dominante concomitantemente ao declínio da nobreza.

O iluminismo estimulava, no plano das ideias, uma cultura centrada na capacidade e na autonomia do indivíduo e defendia o predomínio da razão sobre a fé. Razão e ciência, e não submissão a dogmas, deveriam ser as bases para se entender o mundo. Embora tenha surgido na Inglaterra e na Holanda, o movimento teve sua expressão máxima na França. E o século XVIII ficou de tal maneira a ele associado que recebeu o nome de Século das Luzes.

O que é o Iluminismo?

O Iluminismo é a saída do homem do estado de tutela, pelo qual ele próprio é responsável. O estado de tutela é a incapacidade de utilizar o próprio entendimento sem a condução de outrem. Cada um é responsável por esse estado de tutela quando a causa se refere não a uma insuficiência do entendimento, mas à insuficiência da resolução e da coragem para usá-lo sem ser conduzido por outrem. Sapere aude!* Tenha a coragem de usar seu próprio entendimento. Essa é a divisa do Iluminismo.

KaNT, Emmanuel. Qu’est-ce que les Lumières? [1784].

Paris: Flammarion, 1991. p. 43-45. Tradução nossa.

 *Expressão latina que significa “tenha a coragem de saber, de aprender”.

A aposta na razão tem suas consequências. Ver o mundo como fruto da ação dos homens é diferente de vê-lo como resultado da vontade de Deus. A primeira consequência dessa maneira de ver, que contribuiu para o surgimento da Sociologia, foi apostar na capacidade de mudar o que era fruto da ação dos próprios homens. As injustiças, os sofrimentos causados pelo fato de uns terem muito e outros pouco, as condições desiguais em que viviam as pessoas – tudo isso poderia ser alterado em nome de uma sociedade mais humana. Se o homem fez, ele mesmo pode modificar: foi essa a ideia que inspirou as duas grandes revoluções políticas do fim do século XVIII, a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.

A Revolução Americana foi o desfecho da guerra de independência das Treze Colônias inglesas na América do Norte. Em 4 de julho de 1776, seus representantes reuniram-se e votaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Reunidos em outro congresso na Filadélfia, em 1787, os chamados “pais fundadores” dos Estados Unidos promulgaram a primeira Constituição política escrita dos países do Ocidente.

Os ideais que moveram os líderes da Revolução Americana já eram cultivados na Europa, principalmente na França. As críticas se dirigiam ao poder centralizado, à manutenção de privilégios excessivos pela nobreza e pelo clero, e à exploração dos homens comuns, os plebeus, sem que se pudesse impor ao poder discricionário dos governantes o limite da ação dos governados. Entre os plebeus, os burgueses, que se dedicavam às atividades do comércio, da troca, do mercado, sentiam-se reprimidos em seus propósitos, limitados em suas ambições. Haviam aprendido com os iluministas que todos os homens eram iguais porque racionais. Se eram iguais, nada justificava o fato de não poderem se desenvolver segundo suas capacidades, seu talento e sua disposição. Os ideais iluministas inspiraram, assim, o lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Em 14 de julho de 1789, a prisão da Bastilha, símbolo do poder da nobreza e da monarquia absoluta, foi tomada pelos revolucionários. Entretanto, outro símbolo produzido pela Revolução teve consequências mais profundas: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento que proclamou a igualdade entre todos, pondo fim ao argumento que justificava os privilégios de origem. A sociedade estamental, que subsistira durante séculos, da Idade Média à monarquia absoluta – e passou então a ser chamada de Antigo Regime – perdia sua razão de ser. O resultado mais proclamado da Revolução Francesa foi romper com a crença de que, nascidos em uma camada superior, os indivíduos teriam a garantia de nela permanecer até a morte, ou, ao contrário, nascidos em uma camada inferior, estariam para sempre impedidos de ascender a uma posição socialmente mais valorizada.

 

Jean-Pierre Houel (1734-1813). A tomada da Bastilha, Paris, França, 14 de julho de 1789. 
Óleo sobre tela, 39 x 51 cm.

Costuma-se dizer que a Sociologia é herdeira do legado iluminista no sentido de que os chamados “pais fundadores” da disciplina apostaram na razão humana como instrumento promotor de reformas ou transformações sociais. Foi em diálogo com o projeto racionalista dos iluministas, sua crença no progresso social e sua utopia de reconstrução do mundo pela vontade humana que a Sociologia emergiu.

 

Bibliografia

Tempos modernos, tempos de sociologia: ensino médio: volume único / Helena Bomeny... [et al.] (coordenação). — 2. ed. — São Paulo: Editora do Brasil, 2013.

 


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