Apontado em um levantamento
feito pela Universidade de Campinas (Unicamp) como o cientista social
brasileiro mais citado nos trabalhos acadêmicos do país, Roberto DaMatta há
muito vem refletindo sobre “o que faz do
brasil, Brasil”. Com base em temas como Carnaval, jogo do bicho, piadas,
músicas populares, futebol e trânsito, o antropólogo apresenta um retrato do
rosto brasileiro em suas muitas faces.
Em Carnavais, malandros e heróis, publicado em 1979, e inspirado em
sua vivência nos Estados Unidos, Roberto DaMatta
discute os vários paradoxos e tensões que constituem nossa maneira de ser – ou,
como ele próprio diz, nossos “dilemas”. Por um lado, cremos ser importante
respeitar a lei; por outro, achamos igualmente lícito recorrer ao famoso
“jeitinho”. Gostamos de pensar no Brasil como um país democrático e
igualitário, mas isso não quer dizer que não sejamos também altamente
hierárquicos. Como assim? Bem, imagine a seguinte situação: o filho de um
empresário influente corta o sinal de trânsito a toda velocidade e é parado
pelo guarda. O que você acha que vai acontecer em seguida? Como todos são iguais
diante da lei, o rapaz será advertido e punido devidamente? Ou será que ele vai
dizer um “Você sabe com quem está falando?”?
Roberto DaMatta (Niterói, 29 de julho de 1936) Roberto DaMatta é um dos mais importantes antropólogos
brasileiros. Apesar de ter inicialmente se dedicado a pesquisas sobre
populações indígenas, acabou por desenvolver estudos pioneiros sobre a
sociedade brasileira como um todo e, mais especificamente, sobre os padrões
culturais do país. A partir de temas como o Carnaval, o futebol, a comida, a
morte, o jogo do bicho, a malandragem etc., procurou responder à pergunta O
que faz o brasil, Brasil? – título de um de seus 11 livros –, apontando
diferentes caminhos para a compreensão de nossa identidade nacional. DaMatta lecionou durante muitos anos na
University of Notre Dame, nos Estados Unidos, experiência que lhe rendeu
diversos estudos comparativos sobre as diferenças entre a sociedade
brasileira e a norte-americana. É hoje o quarto autor mais citado em
trabalhos acadêmicos em Ciências Sociais no Brasil, ficando atrás apenas de
três pensadores estrangeiros (Karl Marx, Max Weber e o sociólogo francês
Pierre Bourdieu). Entre seus trabalhos mais importantes estão Carnavais,
malandros e heróis (1979), O que faz do brasil, Brasil? (1984) e A casa e a
rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (1985). |
Para DaMatta, as chances estão
com a segunda opção. Isso porque operamos com uma hierarquia que diz: “Eu sou igual a todo mundo até certo ponto;
devido à minha rede de contatos, à minha família, eu mereço um tratamento
especial”. É como um “direito” às avessas, concedido não pela lei, mas pela
posição que o sujeito ocupa na hierarquia social. Perceba que DaMatta não está
falando aqui apenas do poder econômico, mas do capital social, dos contatos
poderosos que o sujeito pode acionar caso necessite. Queremos ser uma sociedade
legal, regida pela Constituição, diz o antropólogo. Ao mesmo tempo, porém, não
queremos abrir mão das práticas sociais hierárquicas, aquelas que estabelecem
os lugares diferentemente destinados a cada um segundo as escalas de prestígio,
poder ou condição econômica, que ignoram o pacto democrático. As elites falam
de seu desejo de tornar o Brasil uma nação moderna, mas querem manter uma
sociedade em que “cada um sabe seu lugar”, na qual “os de cima” seguem mandando
e “os de baixo” seguem obedecendo; uma sociedade que preserva a lógica do velho
– mas ainda atual – ditado: “Aos amigos,
tudo; aos inimigos, a lei”.
Vemos que, assim como Sérgio
Buarque de Holanda, Roberto DaMatta está problematizando a relação entre o
público e o privado na sociedade brasileira. Esse tema ganha ainda mais
destaque em seu livro A casa e a rua,
publicado em 1985. Casa e rua são categorias que se prestam a uma leitura dos
brasileiros, argumenta DaMatta, porque na cultura brasileira “casa” e “rua” não
se referem simplesmente a espaços geográficos ou a coisas físicas. Referem-se,
antes de tudo, a “entidades morais”, “esferas de ação social”, “domínios
culturais institucionalizados”.
A “casa”, no Brasil, é o espaço
moral que encontra no “mundo da rua” seu oposto simbólico. “Nesse sentido”,
sugere DaMatta, “o espaço definido pela casa pode aumentar ou diminuir, de
acordo com a unidade que surge como foco de oposição ou de contraste. A casa
define tanto um espaço íntimo e privativo de uma pessoa (por exemplo, seu
quarto de dormir) quanto um espaço máximo e absolutamente público, como ocorre
quando nos referimos ao Brasil como nossa casa”.
DaMatta chama nossa atenção
para expressões cotidianas como “vá para o olho da rua!” ou “rua da amargura”,
que exemplificam o quanto a sociedade brasileira rejeita a rua, vista como o
lugar do impessoal, do isolamento e do desumano. A rua é o espaço da
malandragem e do perigo, do que é “de ninguém”. A expressão “sentir-se em
casa”, por sua vez, ajuda a pensar na relação afetuosa que estabelecemos com a
casa. Ali nos sentimos protegidos pelos que nos querem bem, pelos que sabem
quem de fato somos. Nosso maior pesadelo, sugere o antropólogo, é nos vermos
“sem casa”, sem a rede protetora de nossas relações, “apenas” sob jugo da lei.
Roberto DaMatta lembra ainda a
tradição brasileira de dar nomes “subjetivos” aos logradouros (como “Rua
Direita”, “Rua do Comércio”, “Rua da Quitanda”), em contraposição às
coordenadas geométricas norte-americanas. Nos Estados Unidos, diz o autor, as
cidades se orientam mais de acordo com os pontos cardeais (norte/sul,
leste/oeste) e com um sistema numeral para ruas e avenidas. Entre nós, a
orientação não segue códigos racionais e universais, mas refere-se a acidentes
topográficos ou, ainda, a características políticas e sociais.
A casa e a rua marcam mudanças
de atitudes, gestos, roupas, assuntos, papéis sociais. É muito comum, por
exemplo, que o mesmo sujeito que faz questão de manter sua casa limpa e
organizada se sinta à vontade para jogar lixo na calçada. Para muitos
brasileiros, atitudes como essa não são vistas como contraditórias. É por isso
que DaMatta diz que o código da casa (pessoal e hierarquizante) e o código da
rua (individualista e igualitário) são percebidos por nós como lógicas
diferentes, mas nem por isso exclusivas ou hegemônicas. A singularidade do
Carnaval brasileiro residiria justamente no fato de a rua tornar-se casa
durante os festejos. Essa rua transformada em casa subverte tanto o código
hierárquico da rua quanto o da própria casa: a rua passa a ser de todos e de
ninguém. Daí o antropólogo dizer que o Carnaval é um ritual de inversão da
realidade brasileira: uma festa sem dono num país que tudo hierarquiza.
Missão (quase) impossível
Ao longo deste livro, dissemos
repetidas vezes que o Brasil é um país muito diverso social e culturalmente. Um
país plural do ponto de vista de seus rituais e costumes, de uma pluralidade
que vai muito além das reconhecidas diversidades regionais e que se recusa a se
acomodar em modelos explicativos rígidos.
“Temos de tudo no Brasil”,
costumamos dizer. Foi diante desse “tudo” tão diverso e plural que se colocaram
os nossos intérpretes. Longe de ignorar as peculiaridades regionais, as
diferenças entre “litoral” e “sertão”, as maneiras de ser das diferentes
localidades, os estilos de vida dos vários segmentos sociais, esses
intelectuais buscaram fazer dessas diferenças tema de reflexão. Arriscaram
interpretações capazes de traçar ao menos algumas linhas comuns em que nós,
brasileiros de diferentes cores e classes sociais, pudéssemos nos reconhecer.
Missão nada fácil, isso é certo. Mas nem por isso menos interessante.
Recapitulando |
Neste capítulo você aprendeu que as maneiras de
se comportar ou os hábitos mais comuns dos indivíduos ajudam a entender como
uma sociedade concebe a si mesma e como é percebida por integrantes de outras
sociedades. Foi observando nossos hábitos e costumes que certos intelectuais delinearam
algumas interpretações marcantes sobre a identidade brasileira. O estudo
desses autores ajuda a pensar sobre nós, brasileiros, sobre quem somos e como
chegamos a sê-lo. Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do
Brasil, partiu da noção de homem cordial – aquele que age com o coração,
movido pela emoção – para mostrar que a identidade brasileira não se funda na
formalidade ou no respeito a leis universais. Nós nos valemos mais da
espontaneidade e apostamos muito na lógica dos favores. O conceito de homem
cordial ajuda a perceber um dos traços de nossa sociedade: a confusão
frequente entre o que é público e o que é privado, a visão do espaço público
como um prolongamento do espaço privado. Essa característica se desdobra em outros
fenômenos sociais, como o coronelismo, o apadrinhamento, o “jeitinho” e a
corrupção. Outro importante intérprete do Brasil é o antropólogo
Roberto DaMatta. Com base na comparação entre a sociedade brasileira e a
norte-americana, ele também se preocupou em entender como os brasileiros
lidam com as esferas pública e privada. As marcas da identidade brasileira
analisadas por DaMatta foram o “jeitinho brasileiro”, o “você sabe com quem
está falando?” e os sentidos de “casa” e “rua” para nós. Há muitos outros
autores que podem ajudar a compreender a diversidade social e cultural
brasileira, que vai muito além dos regionalismos ou das tradições locais. O
que pretendemos ao lhe apresentar Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta
é instigá-lo a descobrir outras interpretações do Brasil e provocá-lo para
que você também se aventure a responder à pergunta: O que nos faz
brasileiros? |
Bibliografia
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