domingo, 2 de agosto de 2020

O Brasil e seus dilemas

Apontado em um levantamento feito pela Universidade de Campinas (Unicamp) como o cientista social brasileiro mais citado nos trabalhos acadêmicos do país, Roberto DaMatta há muito vem refletindo sobre “o que faz do brasil, Brasil”. Com base em temas como Carnaval, jogo do bicho, piadas, músicas populares, futebol e trânsito, o antropólogo apresenta um retrato do rosto brasileiro em suas muitas faces.


Em Carnavais, malandros e heróis, publicado em 1979, e inspirado em sua vivência nos Estados Unidos, Roberto DaMatta discute os vários paradoxos e tensões que constituem nossa maneira de ser – ou, como ele próprio diz, nossos “dilemas”. Por um lado, cremos ser importante respeitar a lei; por outro, achamos igualmente lícito recorrer ao famoso “jeitinho”. Gostamos de pensar no Brasil como um país democrático e igualitário, mas isso não quer dizer que não sejamos também altamente hierárquicos. Como assim? Bem, imagine a seguinte situação: o filho de um empresário influente corta o sinal de trânsito a toda velocidade e é parado pelo guarda. O que você acha que vai acontecer em seguida? Como todos são iguais diante da lei, o rapaz será advertido e punido devidamente? Ou será que ele vai dizer um “Você sabe com quem está falando?”?

 

 

 


Roberto DaMatta, 2000.

Roberto DaMatta

(Niterói, 29 de julho de 1936)

 

Roberto DaMatta é um dos mais importantes antropólogos brasileiros. Apesar de ter inicialmente se dedicado a pesquisas sobre populações indígenas, acabou por desenvolver estudos pioneiros sobre a sociedade brasileira como um todo e, mais especificamente, sobre os padrões culturais do país. A partir de temas como o Carnaval, o futebol, a comida, a morte, o jogo do bicho, a malandragem etc., procurou responder à pergunta O que faz o brasil, Brasil? – título de um de seus 11 livros –, apontando diferentes caminhos para a compreensão de nossa identidade nacional.

DaMatta lecionou durante muitos anos na University of Notre Dame, nos Estados Unidos, experiência que lhe rendeu diversos estudos comparativos sobre as diferenças entre a sociedade brasileira e a norte-americana. É hoje o quarto autor mais citado em trabalhos acadêmicos em Ciências Sociais no Brasil, ficando atrás apenas de três pensadores estrangeiros (Karl Marx, Max Weber e o sociólogo francês Pierre Bourdieu). Entre seus trabalhos mais importantes estão Carnavais, malandros e heróis (1979), O que faz do brasil, Brasil? (1984) e A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (1985).

 

 

Para DaMatta, as chances estão com a segunda opção. Isso porque operamos com uma hierarquia que diz: “Eu sou igual a todo mundo até certo ponto; devido à minha rede de contatos, à minha família, eu mereço um tratamento especial”. É como um “direito” às avessas, concedido não pela lei, mas pela posição que o sujeito ocupa na hierarquia social. Perceba que DaMatta não está falando aqui apenas do poder econômico, mas do capital social, dos contatos poderosos que o sujeito pode acionar caso necessite. Queremos ser uma sociedade legal, regida pela Constituição, diz o antropólogo. Ao mesmo tempo, porém, não queremos abrir mão das práticas sociais hierárquicas, aquelas que estabelecem os lugares diferentemente destinados a cada um segundo as escalas de prestígio, poder ou condição econômica, que ignoram o pacto democrático. As elites falam de seu desejo de tornar o Brasil uma nação moderna, mas querem manter uma sociedade em que “cada um sabe seu lugar”, na qual “os de cima” seguem mandando e “os de baixo” seguem obedecendo; uma sociedade que preserva a lógica do velho – mas ainda  atual – ditado: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”.

Vemos que, assim como Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta está problematizando a relação entre o público e o privado na sociedade brasileira. Esse tema ganha ainda mais destaque em seu livro A casa e a rua, publicado em 1985. Casa e rua são categorias que se prestam a uma leitura dos brasileiros, argumenta DaMatta, porque na cultura brasileira “casa” e “rua” não se referem simplesmente a espaços geográficos ou a coisas físicas. Referem-se, antes de tudo, a “entidades morais”, “esferas de ação social”, “domínios culturais institucionalizados”.

A “casa”, no Brasil, é o espaço moral que encontra no “mundo da rua” seu oposto simbólico. “Nesse sentido”, sugere DaMatta, “o espaço definido pela casa pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de oposição ou de contraste. A casa define tanto um espaço íntimo e privativo de uma pessoa (por exemplo, seu quarto de dormir) quanto um espaço máximo e absolutamente público, como ocorre quando nos referimos ao Brasil como nossa casa”.

Moradores conversando à tarde em frente a suas casas em rua da cidade de Teresina (PI), 2013.

DaMatta chama nossa atenção para expressões cotidianas como “vá para o olho da rua!” ou “rua da amargura”, que exemplificam o quanto a sociedade brasileira rejeita a rua, vista como o lugar do impessoal, do isolamento e do desumano. A rua é o espaço da malandragem e do perigo, do que é “de ninguém”. A expressão “sentir-se em casa”, por sua vez, ajuda a pensar na relação afetuosa que estabelecemos com a casa. Ali nos sentimos protegidos pelos que nos querem bem, pelos que sabem quem de fato somos. Nosso maior pesadelo, sugere o antropólogo, é nos vermos “sem casa”, sem a rede protetora de nossas relações, “apenas” sob jugo da lei.

Roberto DaMatta lembra ainda a tradição brasileira de dar nomes “subjetivos” aos logradouros (como “Rua Direita”, “Rua do Comércio”, “Rua da Quitanda”), em contraposição às coordenadas geométricas norte-americanas. Nos Estados Unidos, diz o autor, as cidades se orientam mais de acordo com os pontos cardeais (norte/sul, leste/oeste) e com um sistema numeral para ruas e avenidas. Entre nós, a orientação não segue códigos racionais e universais, mas refere-se a acidentes topográficos ou, ainda, a características políticas e sociais.

A casa e a rua marcam mudanças de atitudes, gestos, roupas, assuntos, papéis sociais. É muito comum, por exemplo, que o mesmo sujeito que faz questão de manter sua casa limpa e organizada se sinta à vontade para jogar lixo na calçada. Para muitos brasileiros, atitudes como essa não são vistas como contraditórias. É por isso que DaMatta diz que o código da casa (pessoal e hierarquizante) e o código da rua (individualista e igualitário) são percebidos por nós como lógicas diferentes, mas nem por isso exclusivas ou hegemônicas. A singularidade do Carnaval brasileiro residiria justamente no fato de a rua tornar-se casa durante os festejos. Essa rua transformada em casa subverte tanto o código hierárquico da rua quanto o da própria casa: a rua passa a ser de todos e de ninguém. Daí o antropólogo dizer que o Carnaval é um ritual de inversão da realidade brasileira: uma festa sem dono num país que tudo hierarquiza.

 

Missão (quase) impossível

Ao longo deste livro, dissemos repetidas vezes que o Brasil é um país muito diverso social e culturalmente. Um país plural do ponto de vista de seus rituais e costumes, de uma pluralidade que vai muito além das reconhecidas diversidades regionais e que se recusa a se acomodar em modelos explicativos rígidos.

“Temos de tudo no Brasil”, costumamos dizer. Foi diante desse “tudo” tão diverso e plural que se colocaram os nossos intérpretes. Longe de ignorar as peculiaridades regionais, as diferenças entre “litoral” e “sertão”, as maneiras de ser das diferentes localidades, os estilos de vida dos vários segmentos sociais, esses intelectuais buscaram fazer dessas diferenças tema de reflexão. Arriscaram interpretações capazes de traçar ao menos algumas linhas comuns em que nós, brasileiros de diferentes cores e classes sociais, pudéssemos nos reconhecer. Missão nada fácil, isso é certo. Mas nem por isso menos interessante.

 

Recapitulando

Neste capítulo você aprendeu que as maneiras de se comportar ou os hábitos mais comuns dos indivíduos ajudam a entender como uma sociedade concebe a si mesma e como é percebida por integrantes de outras sociedades. Foi observando nossos hábitos e costumes que certos intelectuais delinearam algumas interpretações marcantes sobre a identidade brasileira. O estudo desses autores ajuda a pensar sobre nós, brasileiros, sobre quem somos e como chegamos a sê-lo.

Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil, partiu da noção de homem cordial – aquele que age com o coração, movido pela emoção – para mostrar que a identidade brasileira não se funda na formalidade ou no respeito a leis universais. Nós nos valemos mais da espontaneidade e apostamos muito na lógica dos favores. O conceito de homem cordial ajuda a perceber um dos traços de nossa sociedade: a confusão frequente entre o que é público e o que é privado, a visão do espaço público como um prolongamento do espaço privado. Essa característica se desdobra em outros fenômenos sociais, como o coronelismo, o apadrinhamento, o “jeitinho” e a corrupção.

Outro importante intérprete do Brasil é o antropólogo Roberto DaMatta. Com base na comparação entre a sociedade brasileira e a norte-americana, ele também se preocupou em entender como os brasileiros lidam com as esferas pública e privada. As marcas da identidade brasileira analisadas por DaMatta foram o “jeitinho brasileiro”, o “você sabe com quem está falando?” e os sentidos de “casa” e “rua” para nós. Há muitos outros autores que podem ajudar a compreender a diversidade social e cultural brasileira, que vai muito além dos regionalismos ou das tradições locais. O que pretendemos ao lhe apresentar Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta é instigá-lo a descobrir outras interpretações do Brasil e provocá-lo para que você também se aventure a responder à pergunta: O que nos faz brasileiros?


 

Bibliografia

Tempos modernos, tempos de sociologia: ensino médio: volume único / Helena Bomeny... [et al.] (coordenação). — 2. ed. — São Paulo: Editora do Brasil, 2013.
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