sábado, 6 de junho de 2020

Estado e sociedade

Desde a Idade Moderna, o exercício do poder político legítimo é considerado em nossa sociedade uma atividade própria do Estado. Um dos primeiros estudiosos a fornecer as bases para essa concepção foi o historiador e diplomata italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), que acompanhou atentamente a centralização política que ocorria em outras partes da Europa. Com base em análises de fatos de sua época e de outros períodos, Maquiavel buscou orientar aquele que pudesse unificar as cidades italianas em um Estado, a fim de que não permanecessem vulneráveis aos exércitos de outras nações.

Embora aconselhe ao soberano que se faça temido pelos governados (inclusive com o uso da força), Maquiavel adverte que ele não pode ser odiado. Vê-se então, desde essa época, a ideia de que, para aceitar a dominação, a sociedade precisa considerá-la legítima.

Hoje, pode-se afirmar que o Estado tem como função assegurar, por meio de políticas públicas, certas condições de vida que a sociedade considera necessárias à população. Não há, no entanto, unanimidade quanto ao papel dessa instituição social, tampouco quanto às interpretações teóricas a respeito dela. É fato que esse é um tema controverso.

 

Concepções de Estado e sociedade civil na Idade Moderna

A primeira definição de sociedade civil foi elaborada pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679). Ele acreditava que, em seu estado natural, os homens lutavam uns contra os outros pelo poder e por riquezas. Por isso, os indivíduos abrem mão de sua liberdade e concebem regras de convivência a fim de garantir condições mínimas de estabilidade. Forma-se, assim, a sociedade civil – que, no pensamento de Hobbes, é sinônimo de Estado.

Para o filósofo inglês John Locke (1632-1704), a sociedade civil é mais um aprimoramento do estado natural do que uma solução para ele. O homem, livre e igual por natureza, precisa de um poder imparcial e legítimo para mediar conflitos, garantindo os direitos que já tinha no estado natural: à vida, à liberdade, à saúde e à propriedade. Além da ideia de igualdade no nascimento, o respeito à propriedade como um direito natural do homem está em conformidade com os fundamentos liberais da burguesia em ascensão na Inglaterra do século XVII.

 




Diosphere Ltd./Diomedia/ A coroação de Guilherme III, em 1689, como rei da Inglaterra. Para ser coroado após a Revolução Gloriosa, Guilherme de Orange aceitou os termos da Declaração de Direitos, pela qual, na prática, repassava o poder político para o Parlamento. Gravura de 1860.

Conforme a burguesia e o Estado moderno se consolidavam na Europa, a noção de sociedade civil foi se distanciando da de sociedade política. Durante a Idade Média, tanto o poder como a propriedade eram hereditários. Na sociedade burguesa moderna, esses  dois aspectos se desvinculam: embora, na sociedade civil, a propriedade continue sendo transmitida de pai para filho, o poder político passa a obedecer a normas e leis próprias. Segundo o cientista político italiano Luciano Gruppi (1920-2003), garante-se a democracia no âmbito da sociedade política, desde que esta não interfira na propriedade e na livre iniciativa econômica.

Se Locke considerava a propriedade privada um direito natural, para o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) ela era justamente a origem da desigualdade e da corrupção moral. A sociedade civil, instaurada com a invenção da propriedade, seria uma degeneração do estado de natureza, no qual os seres humanos eram bons, livres e felizes.

Para Rousseau, os indivíduos só recuperariam as qualidades perdidas quando a sociedade civil se transformasse em sociedade política, na qual a vontade geral do povo seria soberana – ou seja, na qual as leis e regras a serem seguidas emanassem do próprio povo.

O que é e como funciona o Estado? Não há uma visão única sobre isso. Na interpretação do filósofo alemão Friedrich Engels (1820-1895), o Estado é um produto da sociedade e seu papel é amortecer os conflitos sociais, evitar os choques entre as classes e, de certo modo, assegurar a reprodução do sistema social. Eis a sua concepção:

 

O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é “a realidade da ideia moral”, ou “a imagem e a realidade da razão”. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição consigo mesma e está dividida por antagonismos irreconciliáveis [...]. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder colocado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Esse poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciando-se cada vez mais, é o Estado.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Global, 1985. p. 227.

 

Já o filósofo político grego Nicos Poulantzas (1936-1979) pensa o Estado como uma relação de forças, uma relação de poder entre as classes sociais e no próprio interior delas. Para Louis Althusser (1918-1990), f ilósofo francês, o Estado é composto por aparelhos ou instituições sociais (como é o caso do exército, da administração, do sistema judiciário e do aparato da polícia) e tem por função a repressão, ou seja, a manutenção da ordem social. Esta, por sua vez, é moldada pelos interesses da classe dominante, que faz com que o Estado esteja a seu serviço.

Na concepção do sociólogo Max Weber, o Estado só pode existir quando os seres humanos se submetem à autoridade de um grupo dominante. Nesse sentido, quando essa instituição se constitui, estabelece-se uma relação de “dominação do homem sobre o homem”, um “monopólio da violência legítima”. Em outras palavras, trata-se da obediência da população a um grupo dominante mediante uma violência reconhecida e amparada legalmente.







Teresa Maia/DP/D.A Press/ Estudantes entram em confronto com o Batalhão de Choque da Polícia Militar, durante protesto, em 2012, contra o aumento de passagens do transporte público na Região Metropolitana do Recife. Para Althusser, aparelhos como a polícia estão a serviço da ordem social vigente.



Interpretações sobre a natureza do Estado na perspectiva de diferentes pensadores:

 

Karl Marx

(1818-1883)


No Estado prevalece o poder organizado de uma classe social que é dominante por deter a propriedade dos meios materiais de produção. Há na estrutura da sociedade dois níveis articulados: a infraestrutura e a superestrutura. A infraestrutura comporta a unidade de forças produtivas e relações de produção; já a superestrutura é composta das instâncias jurídico-política (o Direito e o Estado) e ideológica (a moral, a ciência, a filosofia, etc.).


Friedrich

Engels

(1820-1895)

O Estado é um produto da sociedade e tem como papel amortecer os conflitos, os choques entre as classes e assegurar a reprodução do sistema social.

Max Weber

(1864-1920)

O Estado existe quando há obediência à autoridade de um grupo dominante e essa relação de dominação está fundada na violência legítima, legalmente reconhecida.

Antonio

Gramsci

(1891-1937)

O Estado tem papel importante nos campos cultural e ideológico, bem como na organização do consentimento – ou seja, busca legitimar-se perante a sociedade civil não apenas pela coerção, mas, sobretudo, pela aceitação da autoridade.

Louis

Althusser

(1918-1990)

As relações de poder necessitam de instituições que as reproduzam – escola, família, igreja, veículos de comunicação, que são os aparelhos ideológicos do Estado. O poder e a ideologia, fenômenos correlatos, são exercidos por essas organizações formais mediante símbolos e práticas sociais.

Nicos

Poulantzas

(1936-1979)

Embora o Estado capitalista não seja um instrumento totalmente controlado pela classe dominante, devido às lutas entre as frações que a compõem, ele fornece o quadro para que os operários não se reconheçam como integrantes de uma mesma classe. Isso ocorre com a criação de noções como a de identidade nacional, que submetem todos a um conjunto unificado de regras e instituições.

Octavio

Ianni

(1926-2004)

O Estado não é apenas um órgão da classe dominante, pois responde aos movimentos das outras classes sociais e age conforme as determinações das relações entre elas. Ele faz parte do jogo de interesses sociais.

 

 

 ENCONTRO COM OS CIENTISTAS SOCIAIS

 Max Weber teoriza sobre as características do Estado moderno. Uma delas é a violência legítima. Leia com atenção e responda à questão.

 

É conveniente definir o conceito de Estado em correspondência com o moderno tipo do mesmo – já que em seu pleno desenvolvimento é inteiramente moderno – mas com abstração de seus fins concretos e variáveis, tal como o vivemos. Caracteriza hoje formalmente ao Estado o ser uma ordem jurídica e administrativa – cujos preceitos podem variar – pela qual se orienta a atividade [...] que se pretende válida aos membros da associação – que a ela pertencem essencialmente por nascimento – como também toda ação executada no território a que se estende a dominação [...]. É, portanto, característico: que hoje só exista coação “legítima” desde que a ordem estatal o permita ou prescreva.

WEBER, Max. Economía y sociedad. v. 1. Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 1977. p. 45. Texto traduzido.

 

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