domingo, 24 de maio de 2020

Mesclando cultura e ideologia


Vivemos em um mundo de comunicações: cotidianamente, entre outras atividades, vemos televisão, fazemos pesquisas na internet contatamos amigos por e-mail, mensagens instantâneas e sites de relacionamento, ouvimos música em fones de ouvido enquanto andamos nas ruas, vemos filmes e propagandas, lemos jornais e revistas, escutamos rádio. Estamos mergulhados tanto na cultura como a ideologia. Vamos tentar entender essa realidade à luz da Sociologia.


Dominação e controle
Ao analisar a cultura e a ideologia, vários autores procuram demonstrar que esses dois conceitos não podem ser utilizados separadamente, pois há uma profunda relação entre eles, sobretudo no que diz respeito ao processo de dominação nas sociedades capitalistas.
O pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1931) analisa essa questão com base no conceito de hegemonia (palavra de origem grega que significa "supremacia", “preponderância”) e no que ele chama de aparelhos de hegemonia.
Por hegemonia pode-se entender o processo pelo qual uma classe dominante consegue que seu projeto seja aceito pelos dominados, desarticulando a visão de mundo autônoma de cada grupo potencialmente adversário. Isso e feito por meio dos aparelhos de hegemonia, que são instituições no interior do Estado ou fora dele, como o sistema escolar, a igreja, os partidos políticos, os sindicatos e os meios de comunicação. Nesse sentido, cada relação de hegemonia é sempre pedagógica, pois envolve uma prática de convencimento de ensino e aprendizagem.
Para Gramsci, uma classe se torna hegemônica quando, além do poder coercitivo e policial, utiliza a persuasão, produz o consenso, que é desenvolvido mediante um sistema de ideias muito bem elaborado por intelectuais a serviço do poder para convencer a maioria das pessoas. Por esse processo, cria-se uma cultura dominante efetiva que deve penetrar no senso comum de um povo, com o objetivo de demonstrar que a visão de mundo daquele que domina é a única possível.

  

A ideologia não e o lugar da ilusão e da mistificação, mas o espaço da dominação, que não se estabelece somente com o uso legítimo da força pelo Estado, mas também pela direção moral e intelectual da sociedade como um todo, baseada nos elementos culturais de cada povo.
Naturalização da corrupção: isso foi, é e será sempre assim...
Mas Gramsci aponta também a possibilidade de haver um processo de contra-hegemonia desenvolvido por intelectuais orgânicos, vinculados a classe trabalhadora, na defesa de seus interesses. Contrapondo-se a inculcação dos ideais burgueses por meio da escola, dos meios de comunicação de massa, etc. combatem nessas mesmas frentes, defendendo outra forma de pensar, agir e sentir na sociedade em que vivem.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) desenvolveu o conceito de violência simbólica para identificar formas culturais que impõe e fazem aceitemos como normal (como verdade que sempre existiu e não pode ser que questionada) um conjunto de regras não escritas nem ditas. Ele usa a palavra grega doxa (que significa "opinião”) para designar esse tipo de pensamento e prática social estável, tradicional, em que o poder apare como natural.
Dessa ideia nasce o que Bourdieu define come naturalização da história, condição em que os fatos sociais, independentemente de ser bons ou ruins, passam por naturais e tornam-se uma verdade para todos. Um exemplo evidente é a dominação masculina vista em nossa sociedade como algo "natural", já que as mulheres são naturalmente mais fracas e sensíveis e, portanto, devem se submeter aos homens. E muitos aceitam essa ideia e dizem que “isso foi, é e será sempre assim".
Bourdieu declara que é pela cultura que os dominantes garantem o controle ideológico, desenvolvendo uma prática cuja finalidade é manter o distanciamento entre as classes sociais. Assim, existem práticas sociais e culturais que distinguem quem é de uma classe ou de outra: os “cultos” têm conhecimentos científicos, artísticos e literários que os opõem aos "incultos”. Isso é resultado de uma imposição cultural violência simbólica que define o que é ter cultura.
Os pensadores alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) procuraram analisar a relação entre cultura e ideologia com base no conceito de indústria cultural. Apresentaram esse conceito em 1947, no texto indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. Nele, afirmaram que o conceito de indústria cultural permitia explicar o fenômeno da exploração comercial e a vulgarização da cultura.
A preocupação básica de Adorno e Horkheimer era a emergência de empresas interessadas na produção em massa de bens culturais, como se fossem mercadorias (como roupas, automóveis, sabonetes, etc.). Essas empresas visam exclusivamente ao consumo, tendo como fundamentos a lucratividade e adesão incondicional ao sistema dominante.
Nos filmes de ação, por exemplo, o espectador é tranquilizado com a promessa de que o vilão tem um castigo merecido. Tanto os sucessos cinematográficos quanto os musicais parecem dizer que a vida tem sempre as mesmas tonalidades e que devemos nos habituar a seguir os compassos previamente marcados. Dessa forma, sentimo-nos integrados a uma sociedade imaginaria, sem conflitos e sem desigualdades.


 nas palavras de
ADORNO
Televisão e ideologia
[...] Em primeiro lugar, compreendo "televisão como ideologia" [...], ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costura dizer tão bem, procurar-se impor as pessoas um conjunto de valores como se fossem dogmaticamente positivos. Além disto, contudo, existe ainda um caráter ideológico formal da televisão, ou seja, desenvolve-se uma espécie de vicio televisivo em que por fim a televisão, como também outros veículos de comunicação de massa, converte-se pela sua simples existência no único conteúdo de consciência, desviando as pessoas por meio da fartura de sua oferta daquilo que deveria se constituir propriamente como seu objeto e sua prioridade [...] Contudo quero destacar também o que considero ser o perigo especifico [...]. Trata-se dessas situações inacreditavelmente falsas, em que aparentemente certos problemas são tratados, discutidos e apresentados [...]. Tais problemas são ocultos sobretudo na medida em que parece haver soluções para todos esses problemas, como se a amável vovó ou o bondoso tio apenas precisassem irromper pela porta mais próxima para novamente consertar um casamento esfacelado. Eis aqui o terrivel mundo dos modelos ideais de uma vida saudável", dando aos homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade, e que além disto dando a impressão de que as contradições presentes desde os primórdios de nossa sociedade poderiam ser superadas e solucionadas no plano das relações inter-humanas, na medida em que tudo dependeria das pessoas. [...]

 ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. P. 79-84


Adorno e Horkheimer apontaram a possibilidade de homogeneização das pessoas, grupos e classes sociais. Colocando a felicidade imediatamente nas mãos dos consumidores mediante a compra de alguma mercadoria ou produto cultural, a indústria cultural seduziria todas as classes, criando assim a uniformização dos modos de pensar, agir e sentir.

JOHN MINCHILLO/AP/GLOW IMAGES
Quinta Avenida Nova York, 21 de setembro de 2012. Aglomeradas diante de uma loja de produtos eletrônicos centenas de pessoas compartilharam o mesmo desejo: ser o primeiro comprador da versão mais recente de um smartphone. O vencedor comemora.





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