segunda-feira, 4 de maio de 2020

Cultura e ideologia

A análise dos fenômenos sociais de nosso cotidiano nos permite perceber a mútua influência entre cultura e ideologia, seja no modo pelo qual os grupos e as classes sociais expressam, em práticas e saberes, sua compreensão e sua trajetória no mundo, seja na forma pela qual essa trajetória é interpretada e valorizada socialmente.


Em cada momento e contexto sócio-histórico, determinados padrões de comportamento são valorizados e outros tratados como secundários ou até rejeitados. Essa condição depende da relação estabelecida entre os diversos conjuntos de indivíduos no processo de interação social. Tal processo é marcado pelos interesses distintos de cada um desses grupos e pela tentativa das classes dominantes de tornar seus modelos referência para as demais classes.
Desse modo, a relação entre as diversas expressões da cultura, os grupos sociais que desenvolvem, seu reconhecimento social e a relação dessas manifestações com o modo de produção capitalista representam como, em nossa sociedade, as relações entre cultura e ideologia são construídas e efetivadas nas relações sociais.
Uma manifestação cultural de origem popular como o funk carioca pode ser caracterizada como expressão social de parcela das classes dominadas da sociedade brasileira. Apesar da origem estadunidense, o funk foi ressignificado pelas populações da periferia das metrópoles brasileiras, que dele se apropriaram e se tornou uma de suas referências na construção da identidade social.
Por causa dessa origem popular, o funk e frequentemente visto como uma manifestação cultural de menor valor. Aqueles que dançam ou cantam suas músicas sofrem preconceito e discriminação, pois praticam uma arte considerada inadequada para os padres dominantes. Muitas vezes, o funk também e associado à criminalidade e até mesmo proibido pelas autoridades policiais.
Entretanto, como gera retorno financeiro significativo, em determinados contextos esse tipo de expressão musical é encampado pelos meios de comunicação de massa e se toma uma mercadoria difundida socialmente. O caso do funk mostra como a cultura (práticas, saberes, valores) está sempre articulada com a ideologia (interpretação, compreensão, difusão de ideias) e com os interesses econômicos dominantes.

As diversas faces da cultura
A cultura é produção humana e o pode hierarquizada, pois não é possível justificar qual seria o padrão cultural a ser tomado como critério de diferenciação. Dizer que determinada prática cultural tem mais valor que outra é afirmar o etnocentrismo. Porém, isso não significa que não possamos relacionar a produção cultural com os grupos que as geraram. Sendo assim, é possível afirmar que a cultura possui diversas faces, que, em grande medida, representam os grupos, sujeitos e contextos dos quais surgiram.

Cultura erudita e cultura popular
Chamamos cultura erudita a prática, os costumes e os saberes produzidos pelas elites ou para elas. Normalmente, tais práticas e saberes estão relacionados a produção cultural das classes dominantes, que procura se distinguir do que é produzido pelas outras classes.
A cultura popular, por sua vez, refere-se às práticas, aos costumes e aos saberes que têm sua origem nas casses dominadas ou populares. Representa o conjunto de manifestações culturais cuja origem remete às experiências cotidianas daqueles que não pertencem as classes dominantes. Se afirmamos que a cultura erudita está ligada à cultura oficial, institucionalizada, devemos entender que a cultura popular expressa o saber não oficial, ou não institucionalizado.
Pelo fato de as práticas culturais efetivarem as visões de mundo das diversas classes sociais, devemos entender que a dinâmica da relação entre cultura erudita e popular também está inserida nesse contexto. Sendo assim, elementos da cultura erudita podem ser utilizados para reforçar a dominação das elites sobre o povo. Ou seja, a difusão de determinada forma de linguagem ou sotaque como padrão nacional pode indicar o estabelecimento do domínio linguístico e cultural de um grupo sobre os demais.
Por outro lado, na tentativa de construir valores contra-hegemônicos, membros de classes dominadas podem se valer de elementos da cultura popular como estratégia para se oporem aos padrões estabelecidos pelas classes dominantes. A valorização do folclore de diversas partes do Brasil constitui uma possibilidade de difusão das experiências e visões de mundo das classes dominadas, ao mesmo tempo que fornece alternativa ao modo de ver e explicar o mundo das classes dominantes.


Com o advento da consolidação do capitalismo, uma nova forma de expressão cultural foi desenvolvida. É a chamada cultura de massa, que se caracteriza por transforma as práticas, os saberes e os costumes das diferentes e classes em mercadoria. Como veremos mais adiante, a cultura de massa é produzida pelos meios de comunicação de massa e pautada por interesses comerciais. Uma de suas consequências é a ofuscação das diferenças entre as culturas popular e erudita, que, ao serem incorporatadas à cultura de massa, perdem sua importância específica no cenário social contemporâneo.
É imporante resaltar que, diferentemente do que afirmam os meios de comunicação, cultura de massa a cultura de massa também possui carater ideológico. Seu atrelamento aos interesses capitalistas a transforma numa expressão crucial da visão de mundo das classes dominantes, ditando comportamentos padronizados e colaborando de maneira central na consolidação dos valores típicos do sistema capitalista.

Indústria cultural e meios de comunicação de massa 

Na análise das relações entre cultura e ideologia, uma temática relevante para as Ciências Sociais é a discussão das relações entre cultura de massa, indústria cultural e meios de comunicação de massa. A proximidade dos conceitos parece indicar uma coi sa só, mas eles constituem elementos distintos na estratégia de consolidação da ideologia capitalista.
Uma questão interessante é que, diferentemente das culturas erudita e popular, que são produzidas respectivamente pelas elites e pelas classes populares, a cultura de massa, ao contrário do que o nome sugere, não é produzida pelas massas, mas para as massas. Ela é gerada no interior da indústria cultural, conjunto de empresas vinculadas a classe dominante que tem como função "produzir" cultura. Mas como produzir industrialmente algo que, como vimos antes, surge das práticas cotidianas dos diferentes grupos e classes sociais?
  
 Quem escreveu sobre isso
O filósofo Theodor Adorno


Theodor Adorno
Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969) nasceu a Alemanha e, como professor Universidade de Frankfurt, participou da fundação do Instituto de Pesquisas Sociais (IPS) no início dos anos de 1920. Reunindo nomes como Walter Benjamin, Max Horkheimer e o próprio Adorno, o IPS propôs uma teoria social engajada, de base marxista, sendo responsável pela criação de conceitos como “indústria cultural”. Entre as principais obras de Adorno está A indústria Cultural: o iluminismo como mistificação das masa de 1947.
Isso acontece pela massificação de saberes e padrões de comportamento que interessam as classes dominantes, para que sejam adotados como referência pelas casses dominadas. Por meio de inúmeros produtos (novelas, filmes, livros, shows, programas de TV. revistas etc), há uma difusão de elementos culturais que tem como premissa a consolidação de valores e comportamentos que reforçam a ordem social capitalista. Para isso, esses produtos incentivam o consumo, a padronização dos gostos, em um processo em que prevalece a busca pelo lucro.
Os meios de comunicação de massa (televisão, radio, cinema, jornais etc), que são os principais veículos de divulgação da cultura de massa, exercem papel essencial nesse contexto. São eles os responsáveis por transmitir os ideais das classes dominantes para o conjunto da sociedade, de forma que, no caso de obtenção de sucesso, possam consolidar seu controle hegemónico sobre as classes dominadas.
Por exemplo, quando um programa jornalistico de uma emissora de televisão apresenta uma noticia, o modo como são narrados os fatos ou apresentadas as entrevista não é neutro. Procura-se construir determinado olhar sobre a realidade que representa a visão dos donos do veículo de comunicação em que a informação está sendo divulgada. Diante da rotina cotidiana das classes trabalhadoras, o principal modo de obter informações é por meio da televisão. Por conta disso, a maneira como essas pessoas vão interpretar os acontecimentos será influenciada pela forma como a emissora e seu telejornal apresentarem os fatos. Assim, a televisão é um veículo essencial para a difusão da cultura e da ideologia dominantes.
Essas e outras questões fizeram com que as Ciências Sociais estudassem os vínculos entre cultura e poder. O estudo da cultura sob a perspectiva das relações de poder e dominação (ou controle social) levou Theodor Adorno e Max Horkheimer (1895-1973) a criarem, em meados dos anos 1940, o conceito de industria cultural. Esse conceito foi elaborado para designar o modo como se produz cultura, com base na padronização verificada em qualquer outra produção industrial. Foi com o advento da Revolução Industrial que se pode fabricar em grande escala produtos padronizados, o que serviu de mola para o surgimento de uma sociedade de consumo. Assim, as empresas responsáveis pela produção em massa de bens culturais como mercadona fazem parte da indústria cultural.
De acordo com Adorno, a produção da cultura passou ter como principal finalidade o lucro. Esse processo de mercantilização tornou-se um obstáculo para a arte exercer sua autonomia de criticar a sociedade, já que nesse sistema de produção ela passaria prioritariamente pelos administradores e técnicos responsáveis por tornar os produtos mais rentáveis e aceitos pelos consumidores. Além disso, a necessidade de consumo, caracterizada pela insaciabilidade, está intimamente ligada à difusão da ideologia capitalista pela indústria cultural e pelos meios de comunicação de massa.
A cultura de massa, como produto da indústria cultura se sustenta oferecendo divertimento e produzindo conformismo. A diversão propiciada pelos produtos da indústria cultural muitas vezes mascara os conflitos existentes na sociedade. O conformismo refere-se à aceitação tácita da realidade social, tal como mostrada pelos meios de comunicação, que não lhe fazem nenhuma crítica. O divertimento e o entretenimento reforçam a naturalização das situações de opressão e desigualdade apresentadas nos filmes, nas telenovelas e nas séries televisiva.
Esse processo de naturalização e conformismo produz a alienação das massas. Funciona como mecanismo de controle social, pois neutraliza a possibilidade de o individuo entender e criticar os padrões de relações sociais aos quais está submetido. Assim, a ideologia dominante transmitida por esses produtos culturais permite a reprodução das relações de dominação na sociedade.


Cultura, ideologia e identidade cultural no século XXI
Desde o século XIX, o telégrafo o rádio, o telefone e o cinema vinham alimentando o desejo humano da ubiquidade, que significa a capacidade de estar presente em todos os lugares ao mesmo tempo. A partir dos anos 1970, a fusão das telecomunicações analógicas com a informática provocou uma transformação no modo como circulam as informações, permitindo uma comunicação multidirecional, desenvolvendo o que o sociólogo espanhol Manuel Castells (1942-) denomina sociedade da informação.
A análise sociológica da sociedade da informação tenta compreender as transformações sofridas pelas sociedades contemporâneas graças ao impacto da revolução digital. A indústria geradora de serviços e de conteúdos digitais passa a ter importância fundamental na formação de comportamentos e hábitos de consumo. No entanto, o modo como essas mudanças ocorrem não pode ser compreendido sem que se perceba que a tecnologia não está apartada da produção social nem da cultura.
As tecnologias, bem como a linguagem e as instituições sociais, são parte da construcões humanas. Elas são produto da sociedade e da cultura, e tanto sua criação quanto o seu uso constituem nossa própria noção de humanidade. Assim, elas não são neutras, e o desenvolvimento tecnológico se orienta por interesses que podem considerar ou não as desigualdades sociais e os abismos digitais.
Na atualidade, as tecnologias digitais, além de representarem o avanço dos meios de comunicação, constituem um campo fecundo para os negócios do capitalismo. Por isso, é importante considerar os contextos culturais e ideológicos nos quais essas tecnologias são utilizadas. Por exemplo, os diversos usos que fazemos das redes sociais on-line são influenciados pelo conjunto de visões de mundo em disputa na sociedade, assim como pelos interesses comerciais e políticos de empresas e governantes.
Uma visão otimista da expansão das tecnologias da informação e desenvolvida pelo filósofo francês Pierre Levy (1956-). Para ele, a propagação das redes sociais on-line pode transformar as relações culturais e politicas, gerando novos modos de exercício da cidadania e da democracia no que ele chama de cibercultura. Nesse aspecto, entende-se que o espaço digital poderá concretizar seu potencial politico ao ser habitado por culturas cada vez mais diversas e participativas. Um exemplo desse uso politico das redes sociais são as manifestações ocorridas no Brasil em junho de 2013, em que essas redes tiveram papel central na organização dos protestos.
Nesse novo contexto social, ganham destaque as tribos urbanas e seu papel na formação das identidades juvenis. Caracterizadas por se constituírem como grupos identitários que questionam os padrões de comportamento e a expressão cultural dominantes, as tribos urbanas surgem nas última décadas do século XX e ganham, na sociedade da informação, diversidade e amplitude geográfica gerando novos e múltiplos sentidos e formas de pertencimento para a juventude. A maneira como os vínculos sociais se difundem pela internet consolida e estabelece uma nova ordem comunicativa, na qual a solidariedade da tribo fortalece e se redefine pelas redes eletrônicas.
Nesse sentido, a logica da identidade, baseada em padrões mais estáveis de individualidade, se desloca para as identificações sucessivas de caráter mais fluido, relacionados ao ritmo e à superposição das tribos, o que remete a uma concepção plural de sujeito. O sociólogo franco-tunisiano Michel Maffesoli (1944-) aponta a formação das tribos urbanas como reação ao processo de homogeneização promovido pela cultura de massa e pela indústria cultural.
Assim, as tribos surgem e vinculam-se com base em interesses contextuais e identificações com elementos específicos da cultura urbana. A partir dai, podemos dizer que, ainda que na sociedade de massas haja uma predominância das influências exercidas pelos meios de comunicação de massa na formação das práticas culturais e das ideologias, existe espaço para que formas alternativas de concepção de mundo e de comportamentos possam se desenvolver e indicar novos caminhos para nossas ações e decisões cotidianas.
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