Um fato que marcou a História:
o encontro, a partir do século XVI, entre os europeus e as sociedades das
Américas, da África e da Ásia, que os europeus até então desconheciam.
Por que escolhemos esse
momento? Porque o contato entre essas civilizações possibilitou a construção do
sistema social que predomina no mundo atual. Muito mais tarde, no século XIX, o
próprio nascimento das Ciências Sociais teve origem na reflexão sobre o
encontro entre diferentes culturas e
suas consequências.
Inicialmente, vamos tomar como
base os modelos que os europeus utilizaram para pensar os nativos daqueles
lugares que consideravam “distantes”. A partir dessa visão de mundo, vamos
refletir sobre as diferenças — sociais, culturais, étnicas, políticas, entre
outras —, um tema fundamental para entender as sociedades de um ponto de vista
antropológico.
A construção do pensamento
antropológico
O avanço colonialista europeu
sobre as Américas, grande parte da África, Ásia e Oceania, empreendido a partir
do século XVI, não resultou apenas em dominações. Esses encontros geraram
relatos de viagem, narrativas descritivas, investigações e todo tipo de
documentos históricos sobre as populações nativas até então desconhecidas pelos
dominadores. Essas informações foram produzidas desde o começo das explorações
europeias, mas só no século XIX, com o avanço do imperialismo europeu,
foram sistematizadas por meio de estudos científicos.
Colonialismo Sistema |
Imperialismo Política de expansão e domínio territorial e/ou
econômico de uma nação sobre outras. |
Essa documentação sobre
populações nativas diversas, somada ao interesse das sociedades colonialistas
em ampliar suas formas de dominação, gerou a produção de um conhecimento que
hoje chamamos de antropológico. A busca desse conhecimento revela a necessidade
de um novo olhar sobre aquelas populações a fim de conhecê-las melhor. E
conhecê-las melhor para quê? A resposta a essa questão tem dois lados: um
prático e um científico.
De um lado, administradores
coloniais, missionários religiosos e comerciantes (agentes das conquistas
realizadas entre os séculos XVI e XIX) tinham interesse prático em conhecer
melhor os “primitivos”. Para os administradores coloniais, isso ajudava a
dominá-los; para os missionários, ajudava a convertê-los; e para os
comerciantes, ajudava a produzir riquezas em benefício próprio a partir do
encontro com os “selvagens”.
VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? Você consegue imaginar como é possível lucrar com
o conhecimento sobre populações nativas? Uma forma muito comum de produzir
riqueza a partir do encontro é simplesmente obrigar os nativos a trabalhar
para o colonizador. A avidez dos colonizadores espanhóis na América produziu
o extermínio de milhares de indígenas, que, forçados a trabalhar em minas de
prata, não tinham mais como se dedicar a lavouras, o que gerou fome e a morte
de milhares de pessoas. |
Por outro lado, os cientistas
que passaram a estudar essas populações a partir do século XIX pretendiam
entender a história da humanidade. Para eles, conhecer as sociedades que
chamavam de primitivas funcionava como um laboratório: quando olhavam para o
presente daquelas populações, acreditavam estar desvendando o passado da
humanidade.
Os cientistas tentaram
sistematizar o conhecimento das populações ditas selvagens em narrativas que
podem ser consideradas histórias de evolução: imagine uma escada na qual as
sociedades são organizadas da “mais simples” para a “mais complexa”. Aqueles
intelectuais olhavam para os dados coletados pela empreitada colonial,
determinavam quais sociedades consideravam mais simples e quais seriam mais
complexas e as distribuíam em uma escada evolutiva. A ilustração da página
seguinte mostra uma dessas narrativas de evolução, criada pelo antropólogo
norte-americano Lewis Henry Morgan (1818-1881), que divide a história da
humanidade em três etapas: selvageria, barbárie e civilização.
Morgan foi um dos principais
teóricos desse momento do conhecimento antropológico. Entre outros intelectuais
fundamentais, podemos citar o inglês Edward B. Tylor (1832-1917) e o escocês
James G. Frazer (1854-1941). Cada um narrou à sua maneira a história de
evolução, sem chegar a um acordo sobre a posição de cada sociedade nos degraus
da escada evolutiva e sobre as linhas evolutivas da humanidade.
Entretanto, apesar das
discordâncias, todos esses autores partiam da ideia de progresso. Ou seja,
pressupunham que as diferentes sociedades sempre avançavam em direção à
civilização.
A evolução da humanidade segundo L. H. Morgan (século XIX)
Assim falou... James Frazer [...] um selvagem está para um homem civilizado assim
como uma criança está para um adulto; e, exatamente como o crescimento
gradual da inteligência de uma criança corresponde ao crescimento gradual da
inteligência da espécie […], assim também um estudo da sociedade selvagem em
vários estágios de evolução permite-nos seguir, aproximadamente — embora, é
claro, não exatamente —, o caminho que os ancestrais das raças mais elevadas
devem ter trilhado em seu progresso ascendente, através da barbárie até a
civilização. Em suma, a selvageria é a condição primitiva da humanidade, e, se
quisermos entender o que era o homem primitivo, temos de saber o que é o
homem selvagem hoje. |
VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? Um estudo das sociedades orientado pela noção de
progresso implica diversas conclusões hoje repudiadas pelas Ciências Sociais:
·
Se toda sociedade evolui da mesma forma, a
diferença entre umas e outras poderia ser explicada pela “dedicação à
evolução”. Algumas teriam andado mais rápido, outras teriam preferido,
“preguiçosamente”, deixar a evolução seguir mais lentamente. ·
Se todas as sociedades seguiram os mesmos
passos, olhar para qualquer sociedade diferente da ocidental seria olhar para
o passado da humanidade. As sociedades ditas selvagens apareceriam como
autênticos “museus vivos”. ·
Se todas as sociedades seguirão pelos mesmos
caminhos, caberia às “mais avançadas” adiantar o processo das “mais
atrasadas”. Isso faz com que o colonialismo seja visto como uma ação de
solidariedade aos povos “atrasados”, que poderiam atingir estágios mais
adiantados justamente por meio da dominação ocidental. |
Aqui surge uma questão que deve
nos acompanhar por todo o livro: para que serve o conhecimento produzido pelas
Ciências Sociais? Entre muitas respostas possíveis, vamos começar pela mais
dura: para dominar. Veremos, por outro lado, que esse mesmo conhecimento também
gerou, por exemplo, defensores dos direitos de populações em risco, como as
indígenas.
O evolucionismo social (nome
dado às teorias que se apoiam em narrativas de evolução) funcionava ao mesmo
tempo como explicação da evolução da humanidade e como justificativa para a
dominação exercida pelos europeus. Para muitos, as teorias do evolucionismo
social não passam de ironia, como se o dominador dissesse ao dominado: “Não é
bem uma dominação; estamos apenas civilizando, e isso é um favor”.
PARA SABER MAIS
Evolucionismo × darwinismo social O evolucionismo social é comumente associado ao
evolucionismo biológico, proposto por Charles Darwin (1809-1882), que
defendia uma evolução pela melhor adaptação ao ambiente. Os evolucionistas
sociais defendiam a ideia de progresso, inspirados pelo filósofo inglês
Herbert Spencer (1820-1903). Um conjunto de teorias elaboradas na Inglaterra
e nos Estados Unidos na década de 1870 se tornou conhecido como darwinismo
social. Essas teorias defendiam a existência de diferenças fundamentais nos
grupos humanos, que se expressavam em raças distintas. A noção de raça foi introduzida no século XIX
pelo naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832), que dividiu a humanidade
em três raças: caucasiana, etíope e mongólica (branca, negra e amarela).
Outros autores teceram variações dessa teoria, sempre relacionando heranças
fisiológicas a distintas capacidades intelectuais e qualidades morais. A
miscigenação deveria ser evitada, já que a mistura traria decadência racial e
social. Sempre privilegiando a “raça” branca, essas teorias serviram de
justificativa para a dominação colonial, da mesma forma que o evolucionismo
social. O darwinismo social também deu origem à eugenia,
teoria que busca produzir uma seleção nos grupos humanos, com base em leis
genéticas. Essa teoria defende a ideia de separar as raças e até mesmo
eliminar aquelas consideradas inferiores. Com base nesses princípios,
políticas eugênicas foram instauradas em vários países, incentivando a
separação entre as raças, proibindo casamentos inter-raciais e incitando todo
tipo de exclusão racial. |
Os adeptos
das teorias evolucionistas estavam convictos de que a escalada para o progresso
só poderia se dar em um sentido: os europeus eram os civilizados e todos os demais
eram atrasados.
Essa teoria
depende da ideia de progresso, mas o que define o progresso? Do ponto de vista
dos intelectuais do século XIX, um dos critérios seria o progresso tecnológico.
Embora pareça justo, esse critério é tão arbitrário como qualquer outro. Foi
adotado porque parecia evidente, mas veremos neste livro que nada é “evidente”,
sempre podemos questionar supostas evidências.
VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? O progresso tecnológico é central nas teorias
evolutivas justamente porque favorece quem as construiu: os intelectuais
europeus e norte-americanos. Mas como seria essa escala se fossem adotados
outros critérios? Vamos pensar, por exemplo, em uma escala organizada pela
ideia de “sustentabilidade”. Nessa escala, sociedade evoluída seria aquela
que se organiza de modo a continuar existindo ao longo do tempo e cujo modo
de vida não esgota os recursos naturais necessários para a sobrevivência de
gerações futuras. Segundo esse critério, a sociedade ocidental capitalista
não ficaria no topo da escada e sociedades consideradas atrasadas” passariam
a ser avançadas. |
Nesta imagem da história em quadrinhos
Tintim na África, do cartunista belga Hergé (1907-1983),
vemos o final da narrativa, quando
Tintim parte do país africano após “ensinar” muito aos congoleses.
Observe que há até um totem ou altar
erigido a Tintim e ao seu cão, Milu.
A
figura é representativa do evolucionismo social, pois coloca no centro aquele
que criou essa teoria: o europeu branco.
O encontro com populações não
europeias resultou tanto em uma teoria sobre a história da humanidade como em
justificativa para a dominação pelos europeus. O que sustenta essa teoria e
essa justificativa é uma ideia de progresso que favorece as sociedades
ocidentais, por colocar no ápice da evolução aquilo que elas próprias
consideram mais evoluído. Essa forma de pensar tem um nome: etnocentrismo.
Bibliografia
Sociologia hoje : volume único
: ensino médio /Igor José de Renó Machado… [et al.]. – 1. ed. – São Paulo :
Ática, 2013.
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