domingo, 12 de julho de 2020

Evolucionismo e Diferenças

Um fato que marcou a História: o encontro, a partir do século XVI, entre os europeus e as sociedades das Américas, da África e da Ásia, que os europeus até então desconheciam.


Por que escolhemos esse momento? Porque o contato entre essas civilizações possibilitou a construção do sistema social que predomina no mundo atual. Muito mais tarde, no século XIX, o próprio nascimento das Ciências Sociais teve origem na reflexão sobre o encontro entre diferentes culturas e suas consequências.

Inicialmente, vamos tomar como base os modelos que os europeus utilizaram para pensar os nativos daqueles lugares que consideravam “distantes”. A partir dessa visão de mundo, vamos refletir sobre as diferenças — sociais, culturais, étnicas, políticas, entre outras —, um tema fundamental para entender as sociedades de um ponto de vista antropológico.

 

A construção do pensamento antropológico

O avanço colonialista europeu sobre as Américas, grande parte da África, Ásia e Oceania, empreendido a partir do século XVI, não resultou apenas em dominações. Esses encontros geraram relatos de viagem, narrativas descritivas, investigações e todo tipo de documentos históricos sobre as populações nativas até então desconhecidas pelos dominadores. Essas informações foram produzidas desde o começo das explorações europeias, mas só no século XIX, com o avanço do imperialismo europeu, foram sistematizadas por meio de estudos científicos.

 

Colonialismo

Sistema ou orientação política de que uma nação lança mão para manter sob seu domínio os destinos de outra, procurando submetê-la nos setores econômico, político e cultural.

  

Imperialismo

Política de expansão e domínio territorial e/ou econômico de uma nação sobre outras.

 

Essa documentação sobre populações nativas diversas, somada ao interesse das sociedades colonialistas em ampliar suas formas de dominação, gerou a produção de um conhecimento que hoje chamamos de antropológico. A busca desse conhecimento revela a necessidade de um novo olhar sobre aquelas populações a fim de conhecê-las melhor. E conhecê-las melhor para quê? A resposta a essa questão tem dois lados: um prático e um científico.

De um lado, administradores coloniais, missionários religiosos e comerciantes (agentes das conquistas realizadas entre os séculos XVI e XIX) tinham interesse prático em conhecer melhor os “primitivos”. Para os administradores coloniais, isso ajudava a dominá-los; para os missionários, ajudava a convertê-los; e para os comerciantes, ajudava a produzir riquezas em benefício próprio a partir do encontro com os “selvagens”.

 

 

VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? 

Você consegue imaginar como é possível lucrar com o conhecimento sobre populações nativas? Uma forma muito comum de produzir riqueza a partir do encontro é simplesmente obrigar os nativos a trabalhar para o colonizador. A avidez dos colonizadores espanhóis na América produziu o extermínio de milhares de indígenas, que, forçados a trabalhar em minas de prata, não tinham mais como se dedicar a lavouras, o que gerou fome e a morte de milhares de pessoas.

 

Por outro lado, os cientistas que passaram a estudar essas populações a partir do século XIX pretendiam entender a história da humanidade. Para eles, conhecer as sociedades que chamavam de primitivas funcionava como um laboratório: quando olhavam para o presente daquelas populações, acreditavam estar desvendando o passado da humanidade.

Os cientistas tentaram sistematizar o conhecimento das populações ditas selvagens em narrativas que podem ser consideradas histórias de evolução: imagine uma escada na qual as sociedades são organizadas da “mais simples” para a “mais complexa”. Aqueles intelectuais olhavam para os dados coletados pela empreitada colonial, determinavam quais sociedades consideravam mais simples e quais seriam mais complexas e as distribuíam em uma escada evolutiva. A ilustração da página seguinte mostra uma dessas narrativas de evolução, criada pelo antropólogo norte-americano Lewis Henry Morgan (1818-1881), que divide a história da humanidade em três etapas: selvageria, barbárie e civilização.

Morgan foi um dos principais teóricos desse momento do conhecimento antropológico. Entre outros intelectuais fundamentais, podemos citar o inglês Edward B. Tylor (1832-1917) e o escocês James G. Frazer (1854-1941). Cada um narrou à sua maneira a história de evolução, sem chegar a um acordo sobre a posição de cada sociedade nos degraus da escada evolutiva e sobre as linhas evolutivas da humanidade.

Entretanto, apesar das discordâncias, todos esses autores partiam da ideia de progresso. Ou seja, pressupunham que as diferentes sociedades sempre avançavam em direção à civilização.

 

A evolução da humanidade segundo L. H. Morgan (século XIX)

 

Assim falou... James Frazer 

[...] um selvagem está para um homem civilizado assim como uma criança está para um adulto; e, exatamente como o crescimento gradual da inteligência de uma criança corresponde ao crescimento gradual da inteligência da espécie […], assim também um estudo da sociedade selvagem em vários estágios de evolução permite-nos seguir, aproximadamente — embora, é claro, não exatamente —, o caminho que os ancestrais das raças mais elevadas devem ter trilhado em seu progresso ascendente, através da barbárie até a civilização. Em suma, a selvageria é a condição primitiva da humanidade, e, se quisermos entender o que era o homem primitivo, temos de saber o que é o homem selvagem hoje.

 

 

 

VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? 

Um estudo das sociedades orientado pela noção de progresso implica diversas conclusões hoje repudiadas pelas Ciências Sociais:

·  Se toda sociedade evolui da mesma forma, a diferença entre umas e outras poderia ser explicada pela “dedicação à evolução”. Algumas teriam andado mais rápido, outras teriam preferido, “preguiçosamente”, deixar a evolução seguir mais lentamente.

·  Se todas as sociedades seguiram os mesmos passos, olhar para qualquer sociedade diferente da ocidental seria olhar para o passado da humanidade. As sociedades ditas selvagens apareceriam como autênticos “museus vivos”.

·  Se todas as sociedades seguirão pelos mesmos caminhos, caberia às “mais avançadas” adiantar o processo das “mais atrasadas”. Isso faz com que o colonialismo seja visto como uma ação de solidariedade aos povos “atrasados”, que poderiam atingir estágios mais adiantados justamente por meio da dominação ocidental.

 

Aqui surge uma questão que deve nos acompanhar por todo o livro: para que serve o conhecimento produzido pelas Ciências Sociais? Entre muitas respostas possíveis, vamos começar pela mais dura: para dominar. Veremos, por outro lado, que esse mesmo conhecimento também gerou, por exemplo, defensores dos direitos de populações em risco, como as indígenas.

O evolucionismo social (nome dado às teorias que se apoiam em narrativas de evolução) funcionava ao mesmo tempo como explicação da evolução da humanidade e como justificativa para a dominação exercida pelos europeus. Para muitos, as teorias do evolucionismo social não passam de ironia, como se o dominador dissesse ao dominado: “Não é bem uma dominação; estamos apenas civilizando, e isso é um favor”.

 

 PARA SABER MAIS

 

Evolucionismo × darwinismo social

O evolucionismo social é comumente associado ao evolucionismo biológico, proposto por Charles Darwin (1809-1882), que defendia uma evolução pela melhor adaptação ao ambiente. Os evolucionistas sociais defendiam a ideia de progresso, inspirados pelo filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903). Um conjunto de teorias elaboradas na Inglaterra e nos Estados Unidos na década de 1870 se tornou conhecido como darwinismo social. Essas teorias defendiam a existência de diferenças fundamentais nos grupos humanos, que se expressavam em raças distintas.

A noção de raça foi introduzida no século XIX pelo naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832), que dividiu a humanidade em três raças: caucasiana, etíope e mongólica (branca, negra e amarela). Outros autores teceram variações dessa teoria, sempre relacionando heranças fisiológicas a distintas capacidades intelectuais e qualidades morais. A miscigenação deveria ser evitada, já que a mistura traria decadência racial e social. Sempre privilegiando a “raça” branca, essas teorias serviram de justificativa para a dominação colonial, da mesma forma que o evolucionismo social.

O darwinismo social também deu origem à eugenia, teoria que busca produzir uma seleção nos grupos humanos, com base em leis genéticas. Essa teoria defende a ideia de separar as raças e até mesmo eliminar aquelas consideradas inferiores. Com base nesses princípios, políticas eugênicas foram instauradas em vários países, incentivando a separação entre as raças, proibindo casamentos inter-raciais e incitando todo tipo de exclusão racial.

 

 

Os adeptos das teorias evolucionistas estavam convictos de que a escalada para o progresso só poderia se dar em um sentido: os europeus eram os civilizados e todos os demais eram atrasados.

Essa teoria depende da ideia de progresso, mas o que define o progresso? Do ponto de vista dos intelectuais do século XIX, um dos critérios seria o progresso tecnológico. Embora pareça justo, esse critério é tão arbitrário como qualquer outro. Foi adotado porque parecia evidente, mas veremos neste livro que nada é “evidente”, sempre podemos questionar supostas evidências.

 

 

VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? 

O progresso tecnológico é central nas teorias evolutivas justamente porque favorece quem as construiu: os intelectuais europeus e norte-americanos. Mas como seria essa escala se fossem adotados outros critérios? Vamos pensar, por exemplo, em uma escala organizada pela ideia de “sustentabilidade”. Nessa escala, sociedade evoluída seria aquela que se organiza de modo a continuar existindo ao longo do tempo e cujo modo de vida não esgota os recursos naturais necessários para a sobrevivência de gerações futuras. Segundo esse critério, a sociedade ocidental capitalista não ficaria no topo da escada e sociedades consideradas atrasadas” passariam a ser avançadas.

 

 


Capa da primeira edição brasileira,
Editora Record, 1970.


Nesta imagem da história em quadrinhos Tintim na África, do cartunista belga Hergé (1907-1983),
vemos o final da narrativa, quando Tintim parte do país africano após “ensinar” muito aos congoleses.
Observe que há até um totem ou altar erigido a Tintim e ao seu cão, Milu.
A figura é representativa do evolucionismo social, pois coloca no centro aquele que criou essa teoria: o europeu branco.

O encontro com populações não europeias resultou tanto em uma teoria sobre a história da humanidade como em justificativa para a dominação pelos europeus. O que sustenta essa teoria e essa justificativa é uma ideia de progresso que favorece as sociedades ocidentais, por colocar no ápice da evolução aquilo que elas próprias consideram mais evoluído. Essa forma de pensar tem um nome: etnocentrismo.

 

Bibliografia

Sociologia hoje : volume único : ensino médio /Igor José de Renó Machado… [et al.]. – 1. ed. – São Paulo : Ática, 2013.


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