domingo, 24 de maio de 2020

Cultura e civilização

Em seu livro O processo civilizador, o sociólogo Norbert Elias defende que, mais do que pela “natureza humana”, o ser humano se define por meio da relação com o outro – ou seja, ele se faz humano e se torna membro da humanidade. Incompleto e dependente, até no aspecto biológico, ao nascer, o ser humano se humaniza porque necessita da família e das relações sociais típicas do seu grupo para se constituir. Ele depende, portanto, de seu contexto cultural e social.

Nesse sentido, é a cultura de uma sociedade que define os parâmetros do bem e do mal, do justo e do injusto, do lícito e do ilícito. Envolto nessa relação com sua cultura, o indivíduo pode se adaptar, se sujeitar ou se rebelar. Ainda segundo Elias, os ocidentais, por exemplo, nem sempre se comportaram da maneira como o fazem hoje: alguns atributos que consideramos típicos do indivíduo “civilizado” resultaram de lentas transformações, por meio das quais suas condutas, comportamentos e costumes foram sendo condicionados socialmente. Então, civilização e cultura coincidem? Aliás, o que significa exatamente civilização?

A partir do século XVIII, [...] o termo Cultura articula-se, ora positiva ora negativamente, com o termo Civilização. Este, derivando-se do latim cives e civitas, referia-se ao civil como homem educado, polido e à ordem social (donde o surgimento da expressão Sociedade Civil). Entretanto, Civilização possuía um sentido mais amplo que civil. Significava, por um lado, o ponto final de uma situação histórica, seu acabamento ou perfeição, e, por outro lado, um estágio ou uma etapa do desenvolvimento histórico-social, pressupondo, assim, a noção de progresso.
CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 11-12.



Alguns cientistas sociais definem os termos civilização e cultura como sinônimos, outros os distinguem. É o caso de Norbert Elias, para quem civilização é a consciência que as sociedades ocidentais têm em relação a si próprias, ou seja, um termo que designa as alterações especificamente ocidentais em dimensões de relacionamento e criatividade, como os costumes, a tecnologia e o conhecimento científico.
O historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012) concebe como sociedade “civilizada” aquela que determina regras e comportamentos de controle para seus membros e para os de outras sociedades. Desse tipo de prática pode-se citar o imperialismo do século XIX e início do XX, o qual nada mais era do que a supremacia de caráter territorial, cultural e financeiro exercida por uma nação sobre outra. Nessa época, os europeus definiam a si mesmos como “civilizados”, em oposição aos povos considerados por eles “selvagens” – os africanos, os asiáticos e os latino-americanos, ou seja, todos aqueles considerados diferentes deles.
Esse discurso da superioridade europeia caracterizava o outro (o diferente) como algo fora do padrão, tornando-o um inimigo a ser vencido. Como analisa o antropólogo brasileiro Carlos Brandão (1940-), o argumento utilizado era o de que os outros povos precisavam também se tornar parte da “civilização”. O texto abaixo, do escritor britânico Joseph Kipling (1865-1936), ilustra como era vista essa “missão” europeia com relação aos povos considerados não civilizados:
A nós – não aos outros – incumbe um dever precioso: levar a luz e a civilização aos lugares mais distantes do mundo. Despertar a alma da Ásia e África para as ideias morais da Europa; dar a milhões de homens, que sem isso não conheceriam a paz, nem a segurança, essas condições prévias do progresso humano.
KIPLING, Joseph apud COMBLAIN, José. Nação e nacionalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1965. p. 240.

 

Centre historique des Archives Nationales, Paris, France/Archives Charmet/the Bridgeman Art Library/Keystone/
Na foto ao lado, da década de 1910, habitantes da atual República dos Camarões trabalham em plantação de café. Alguns povos do continente africano foram explorados pelos europeus visando atender aos interesses destes.

 
Tendo em vista que o ser humano se coloca no mundo, o vê e o interpreta  pela perspectiva da cultura em que se insere, uma tendência comum em nossa sociedade tem sido naturalizar o nosso próprio modo de vida como se fosse o único correto, tomando-o como padrão de análise na comparação com outras culturas. Tal atitude é denominada etnocentrismo. Esse comportamento explica a sensação de estranhamento causada por hábitos e valores diferentes daqueles com os quais estamos acostumados e que são preconizados por nossa cultura. Conforme nos diz o antropólogo brasileiro Roque Laraia (1932-):
 O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais.
LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 75.

 
O relativismo cultural
Para evitar visões distorcidas e etnocêntricas sobre o “outro” – como a expressa na citação de Kipling, anteriormente, – a Antropologia propõe uma análise sobre aquele que é diferente de nós fundada no chamado relativismo cultural. Relativizar culturalmente significa que, ao falarmos sobre outros povos e grupos, precisamos antes nos indagar: como concebemos a sociedade da qual fazemos parte? Podemos definir outros povos e culturas como primitivos ou arcaicos, civilizados ou não? Quais parâmetros seriam utilizados para tal definição? Até que ponto uma classificação desse tipo seria adequada, ou tendenciosa?
Cabe refletir e entender que outras sociedades ou grupos sociais têm concepções e valores diferentes dos nossos acerca da vida e do mundo, por exemplo – nem melhores, nem piores. Isto pode ser explicado por inúmeros fatores inter-relacionados, fruto das distintas experiências e de uma complexa teia de relações sociais, constituídas historicamente no âmbito de cada cultura.
Nossa perspectiva cultural (a educação do nosso olhar) normalmente está relacionada com o lugar social ocupado por nós e as relações estabelecidas com os demais, na sociedade. O modo como vemos o mundo, apreciamos as coisas de forma valorativa e moral, nossos comportamentos sociais e até posturas corporais são produtos de uma herança cultural, analisa Laraia.
As Ciências Sociais, em especial a Antropologia, ao ampliar nosso conhecimento acerca de outras culturas e suas expressões, nos ajudam a relativizar nossa visão de mundo. Em outras palavras, fazem refletir sobre as diferenças entre as diversas culturas e aprimoram a perspectiva por meio da qual percebemos e interpretamos a própria cultura. Esse processo também nos ensina que muitos comportamentos e visões de mundo que nos parecem “naturais” ou “biológicos” na verdade são produtos da cultura, já que variam em diferentes grupos e sociedades.
O reconhecimento da existência do outro, de culturas de diferentes grupos, povos e sociedades (a alteridade), implica a experiência do contato com outras culturas, a aceitação das diferenças. Essa é uma forma de desvendar alguns aspectos da nossa cultura que antes nos passavam despercebidos.


Alteridade
Do latim alteritas (‘outro’), indica a condição daquilo que é diferente, distinto.

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