sexta-feira, 29 de maio de 2020

A teoria da democracia racial

A partir da década de 1930, no contexto de construção de uma identidade nacional que valorizasse a interação social entre as diferentes etnias formadoras da população brasileira, desenvolveu-se uma nova perspectiva acerca da questão racial. Tendo como expoente Gilberto Freyre, firmou-se a noção de que o Brasil seria uma sociedade na qual, em vez da discriminação e da segregação raciais absolutas, haveria miscigenação, o que possibilitaria o convívio harmonioso entre as diferentes “raças”. Para a chamada democracia racial, o fenômeno da mestiçagem era consequência da convivência “salutar” e “democrática” entre pessoas de “raças” diferentes. 



 Quem escreveu sobre isso

Gilberto Freyre

Gilberto Freyre (1900-1987), sociólogo, antropólogo e historiador pernambucano, é considerado um dos mais importantes pesquisadores da cultura e da identidade nacionais no Brasil. A principal contribuição de Freyre para a discussão sobre as relações raciais é a interpretação do Brasil com base nos aspectos positivos da miscigenação, rompendo com as teorias racistas que predominaram no século XIX.

Gilberto Freyre foi um dos principais estudiosos das relações sociais no Brasil.


Os estudos de Freyre sobre a mestiçagem e sua visão da convivência racial harmoniosa no Brasil provocaram uma revisão das teorias raciais, que condenavam sociedades com grandes contingentes de mestiços, e ofereceram uma visão mais otimista da realidade brasileira: uma nacionalidade marcada pela miscigenação de três raças. Esse olhar despertou o interesse das elites políticas e intelectuais, nacionais e internacionais, em um cenário marcado pela ascensão e queda do nazismo. A partir de 1950, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) passou a financiar estudos sobre o caráter positivo das relações raciais no Brasil, possibilitando novas análises das questões relacionadas à situação do negro e aos preconceitos raciais na vida social brasileira. Freyre não ignorava a dimensão conflituosa das relações entre as matrizes europeia, ameríndia e africana. Contudo, procurou enfatizar o fato de as três terem contribuído para a constituição da identidade nacional brasileira.
A perspectiva positiva de um comportamento racial tolerante no Brasil fortaleceu a crença de que no país não haveria preconceito nem discriminação racial, mas sim oportunidades econômicas e sociais equilibradas para as pessoas de diferentes grupos raciais ou étnicos. O Brasil foi tomado como modelo a ser seguido, quando comparado com outros países em que a segregação era visível social e legalmente. Um dos exemplos que ilustram essa tese foi a promulgação, em 1951, da Lei Federal nº 1.390/51, conhecida como Lei Afonso Arinos, que tornou o racismo contravenção penal no Brasil. O pequeno alcance punitivo dessa lei era reflexo de um pensamento segundo o qual o ato racista não era uma ação disseminada na sociedade, mas apenas uma manifestação individual. Se no Brasil não se percebia o racismo como um problema, não havia por que puni-lo de modo mais severo.

O mito da democracia racial

Essa visão de convívio harmonioso entre as raças foi desconstruída pelos estudos de Florestan Fernandes - que participou das pesquisas financiadas pela Unesco com Roger Bastide -, que redundaram no livro A integração do negro na sociedade de classes. Nessa obra, publicada em 1965, o autor analisa as particularidades do caso brasileiro e afirma ser a democracia racial um mito, uma imagem idealizada, que serve para garantir a manutenção da posição inferior do negro na sociedade brasileira. Como principal argumento, defende que os negros libertos no período pós-abolição não ameaçavam política e socialmente a posição de poder (e os privilégios) dos brancos, sendo desnecessárias medidas formais para promover o distanciamento entre negros e brancos.
Ao longo dos anos 1960 e 1970, inspirado pelos estudos de Florestan Fernandes, o movimento negro brasileiro assumiu como bandeira política a luta contra a teoria da democracia racial. Ressalte-se ainda que esse movimento sofreu influência da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 1950 e 1960.

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Florestan Fernandes
Florestan Fernandes (1920-1995), sociólogo paulista, publicou em 1965 A integração do negro na sociedade de classes, obra na qual construiu uma crítica sociologicamente fundamentada na teoria da democracia racial brasileira. Professor da USP cassado em 1968 pela ditadura militar, foi deputado federal por dois mandatos (1987-1994). Contribuiu para a construção da teoria sociológica brasileira e participou ativamente dos movimentos sociais pela educação pública.

Florestan Fernandes contribuiu para a teoria social e atuou politicamente em defesa da democracia


A partir de então, passou a fundamentar sua ação nas conclusões sociológicas de Fernandes sobre as condições de desigualdades sociais entre negros e brancos no Brasil.

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A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos

Ao final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos eram vistos como o modelo de sociedade a ser seguido pelos países capitalistas. Considerada por muitos a terra das oportunidades e da igualdade, a nação escondia relações sociais internas marcadas pelo preconceito e pela discriminação. Essa situação opressiva ficou evidente em 1955, com a repercussão do ato praticado por uma mulher negra, Rosa Parks, ao se recusar a cumprir uma determinação legal do estado do Alabama que obrigava a separação entre brancos e negros a bordo dos ônibus. Presa, seu caso serviu de estopim para o início da luta pelos direitos civis e pela igualdade racial nos Estados Unidos. O movimento culminou com a marcha em Washington, D.C., em 1963, quando cerca de 250 mil pessoas foram acompanhar a aprovação das leis dos direitos civis, que suprimiram as leis segregacionistas em todos os estados do país. Ao entrar em vigor, em 1964, a lei dos direitos civis produziu mudanças estruturais na sociedade estadunidense e permitiu outro olhar sobre o problema do racismo naquele país e no mundo, servindo de base para a luta por igualdade de diversas minorias sociais.



As desvantagens dos negros e mestiços são confirmadas estatisticamente por muitas pesquisas acadêmicas, como se pode observar nos dados sobre a distribuição de renda no Brasil mostrados nas tabelas a seguir. Apesar de representarem a metade da população brasileira, os pretos e pardos constituem 74,2% da população mais pobre do país e apenas 16% da mais rica.
A posição de desvantagem econômica dos negros (pretos e pardos) fica evidente quando notamos que a proporção de negros na população pobre do país é muito superior à de brancos, e, inversamente, que a proporção de negros que compõem a minoria rica do país não chega à quinta parte desta.

População brasileira por raça
População brasileira
Brancos
Pretos e pardos
Amarelos, indígenas e sem declaração
190.755.799
91.051.646
96.795.294
2.908.859

47,7%
50,7%
1,1%
Fonte: IBGE. Censo 2010: resultados gerais de amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
               
Rendimento do trabalho por raça
População com rendimento de trabalho, entre os 10% mais pobres, em relação ao total de pessoas (%)
Branca
Preta
Parda
25,4
9,4
64,8
Com rendimento de trabalho, entre o 1% mais rico, em relação ao total de pessoas (%)
Branca
Preta
Parda
82,5
1,8
14,2
Fonte: IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.

Os pretos e pardos constituem metade da população total, mas representam a grande maioria da população pobre. Some-se a isso o fato de que essa desvantagem econômica ocorre em quase todas as esferas da vida social, como no acesso às oportunidades culturais e educacionais, e no que se refere à participação política. Embora a população negra desempenhe papel importante na vida cultural e na produção de riquezas no Brasil, seu acesso a bens e serviços continua a ser mínimo se comparado ao da população branca.
No caso brasileiro, as populações indígena, afrodescendente e mestiça continuam a ser tratadas de maneira preconceituosa e desigual, confirmando as críticas de Florestan Fernandes ao tratamento dado à questão racial brasileira, bem como as limitações da tese da democracia racial. Contudo, esta última também tem seu valor. Se por um lado a tese de uma miscigenação pacífica e isenta de conflitos pode e deve ser criticada, já que não se confirma na realidade, por outro ela teve e ainda tem papel essencial na crítica às teses eugênicas e de superioridade racial.
Ainda hoje, em um contexto científico no qual o conceito de raças foi abandonado, essas teorias racistas continuam a ser defendidas por diversos grupos sociais, como os neonazistas. Cabe lembrar que as obras de Gilberto Freyre foram produzidas em um momento histórico no qual as teorias eugênicas alcançavam seu apogeu, com a ascensão do nazismo na Europa. É certo, porém, admitir que no Brasil o racismo está bastante enraizado nas práticas sociais, o que impede que a população perceba conscientemente seus efeitos destrutivos para a sociedade.
Para tentar combater o problema, o movimento negro brasileiro pressionou o governo e, em 1989, conseguiu que fosse promulgada a Lei nº 7.716/89, que tornou o racismo crime inafiançável. No entanto, a criminalização do racismo como prática social pela criação de leis tem se revelado insuficiente. Dificilmente os casos denunciados resultam na punição do agressor. Desde cedo, se aprende a discriminar discreta e silenciosamente, sem deixar provas. E sem provas não há punição.
Os casos de racismo no futebol dão ideia da extensão do problema. Nesse esporte, o Brasil destaca-se pelos títulos mundiais e por revelar alguns dos melhores jogadores negros do mundo. Mesmo assim, casos de racismo se repetem constantemente nos gramados nacionais e internacionais. E não ocorrem apenas no esporte, mas também nos diferentes espaços e nas relações sociais.

Faixa contra o racismo durante partida entre Vasco e Flamengo, no Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ, 2014). Clubes, jogadores e federações esportivas têm procurado conscientizar os torcedores, condenando o racismo no esporte.
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