A partir da década de 1930, no
contexto de construção de uma identidade nacional que valorizasse a interação
social entre as diferentes etnias formadoras da população brasileira,
desenvolveu-se uma nova perspectiva acerca da questão racial. Tendo como expoente
Gilberto Freyre, firmou-se a noção de que o Brasil seria uma sociedade na qual,
em vez da discriminação e da segregação raciais absolutas, haveria
miscigenação, o que possibilitaria o convívio harmonioso entre as diferentes “raças”.
Para a chamada democracia racial, o
fenômeno da mestiçagem era
consequência da convivência “salutar” e “democrática” entre pessoas de “raças”
diferentes.
Quem escreveu sobre isso
Os estudos de Freyre sobre a
mestiçagem e sua visão da convivência racial harmoniosa no Brasil provocaram
uma revisão das teorias raciais, que condenavam sociedades com grandes
contingentes de mestiços, e ofereceram uma visão mais otimista da realidade
brasileira: uma nacionalidade marcada pela miscigenação de três raças. Esse
olhar despertou o interesse das elites políticas e intelectuais, nacionais e
internacionais, em um cenário marcado pela ascensão e queda do nazismo. A
partir de 1950, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco) passou a financiar estudos sobre o caráter positivo das
relações raciais no Brasil, possibilitando novas análises das questões
relacionadas à situação do negro e aos preconceitos raciais na vida social
brasileira. Freyre não ignorava a dimensão conflituosa das relações entre as
matrizes europeia, ameríndia e africana. Contudo, procurou enfatizar o fato de
as três terem contribuído para a constituição da identidade nacional
brasileira.
A perspectiva positiva de um
comportamento racial tolerante no Brasil fortaleceu a crença de que no país não
haveria preconceito nem discriminação racial, mas sim oportunidades econômicas
e sociais equilibradas para as pessoas de diferentes grupos raciais ou étnicos.
O Brasil foi tomado como modelo a ser seguido, quando comparado com outros
países em que a segregação era visível social e legalmente. Um dos exemplos que
ilustram essa tese foi a promulgação, em 1951, da Lei Federal nº 1.390/51,
conhecida como Lei Afonso Arinos, que tornou o racismo contravenção penal no
Brasil. O pequeno alcance punitivo dessa lei era reflexo de um pensamento
segundo o qual o ato racista não era uma ação disseminada na sociedade, mas
apenas uma manifestação individual. Se no Brasil não se percebia o racismo como
um problema, não havia por que puni-lo de modo mais severo.
O
mito da democracia racial
Essa visão de convívio
harmonioso entre as raças foi desconstruída pelos estudos de Florestan
Fernandes - que participou das pesquisas financiadas pela Unesco com Roger
Bastide -, que redundaram no livro A integração do negro na sociedade de
classes. Nessa obra, publicada em 1965, o autor analisa as particularidades do
caso brasileiro e afirma ser a democracia racial um mito, uma imagem
idealizada, que serve para garantir a manutenção da posição inferior do negro
na sociedade brasileira. Como principal argumento, defende que os negros
libertos no período pós-abolição não ameaçavam política e socialmente a posição
de poder (e os privilégios) dos brancos, sendo desnecessárias medidas formais
para promover o distanciamento entre negros e brancos.
Ao longo dos anos 1960 e 1970,
inspirado pelos estudos de Florestan Fernandes, o movimento negro brasileiro
assumiu como bandeira política a luta contra a teoria da democracia racial.
Ressalte-se ainda que esse movimento sofreu influência da luta pelos direitos
civis nos Estados Unidos nos anos 1950 e 1960.
Quem escreveu sobre isso
A partir de então, passou a
fundamentar sua ação nas conclusões sociológicas de Fernandes sobre as
condições de desigualdades sociais entre negros e brancos no Brasil.
Saiba mais
A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos
Ao final da Segunda Guerra Mundial, os Estados
Unidos eram vistos como o modelo de sociedade a ser seguido pelos países
capitalistas. Considerada por muitos a terra das oportunidades e da
igualdade, a nação escondia relações sociais internas marcadas pelo
preconceito e pela discriminação. Essa situação opressiva ficou evidente em
1955, com a repercussão do ato praticado por uma mulher negra, Rosa Parks, ao
se recusar a cumprir uma determinação legal do estado do Alabama que obrigava
a separação entre brancos e negros a bordo dos ônibus. Presa, seu caso serviu
de estopim para o início da luta pelos direitos civis e pela igualdade racial
nos Estados Unidos. O movimento culminou com a marcha em Washington, D.C., em
1963, quando cerca de 250 mil pessoas foram acompanhar a aprovação das leis
dos direitos civis, que suprimiram as leis segregacionistas em todos os estados
do país. Ao entrar em vigor, em 1964, a lei dos direitos civis produziu
mudanças estruturais na sociedade estadunidense e permitiu outro olhar sobre
o problema do racismo naquele país e no mundo, servindo de base para a luta
por igualdade de diversas minorias sociais.
|
As desvantagens dos negros e
mestiços são confirmadas estatisticamente por muitas pesquisas acadêmicas, como
se pode observar nos dados sobre a distribuição de renda no Brasil mostrados
nas tabelas a seguir. Apesar de representarem a metade da população brasileira,
os pretos e pardos constituem 74,2% da população mais pobre do país e apenas
16% da mais rica.
A posição de desvantagem
econômica dos negros (pretos e pardos) fica evidente quando notamos que a
proporção de negros na população pobre do país é muito superior à de brancos,
e, inversamente, que a proporção de negros que compõem a minoria rica do país
não chega à quinta parte desta.
População
brasileira por raça
|
|||
População
brasileira
|
Brancos
|
Pretos
e pardos
|
Amarelos,
indígenas e sem declaração
|
190.755.799
|
91.051.646
|
96.795.294
|
2.908.859
|
47,7%
|
50,7%
|
1,1%
|
Fonte: IBGE. Censo 2010: resultados gerais de amostra. Rio de
Janeiro: IBGE, 2010.
Rendimento
do trabalho por raça
|
||
População
com rendimento de trabalho, entre os 10% mais pobres, em relação ao total de
pessoas (%)
|
||
Branca
|
Preta
|
Parda
|
25,4
|
9,4
|
64,8
|
Com
rendimento de trabalho, entre o 1% mais rico, em relação ao total de pessoas
(%)
|
||
Branca
|
Preta
|
Parda
|
82,5
|
1,8
|
14,2
|
Fonte: IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios 2009. Rio
de Janeiro: IBGE, 2010.
Os pretos e pardos constituem
metade da população total, mas representam a grande maioria da população pobre.
Some-se a isso o fato de que essa desvantagem econômica ocorre em quase todas
as esferas da vida social, como no acesso às oportunidades culturais e
educacionais, e no que se refere à participação política. Embora a população
negra desempenhe papel importante na vida cultural e na produção de riquezas no
Brasil, seu acesso a bens e serviços continua a ser mínimo se comparado ao da
população branca.
No caso brasileiro, as
populações indígena, afrodescendente e mestiça continuam a ser tratadas de
maneira preconceituosa e desigual, confirmando as críticas de Florestan Fernandes
ao tratamento dado à questão racial brasileira, bem como as limitações da tese
da democracia racial. Contudo, esta última também tem seu valor. Se por um lado
a tese de uma miscigenação pacífica e isenta de conflitos pode e deve ser
criticada, já que não se confirma na realidade, por outro ela teve e ainda tem
papel essencial na crítica às teses eugênicas e de superioridade racial.
Ainda hoje, em um contexto
científico no qual o conceito de raças foi abandonado, essas teorias racistas
continuam a ser defendidas por diversos grupos sociais, como os neonazistas.
Cabe lembrar que as obras de Gilberto Freyre foram produzidas em um momento
histórico no qual as teorias eugênicas alcançavam seu apogeu, com a ascensão do
nazismo na Europa. É certo, porém, admitir que no Brasil o racismo está
bastante enraizado nas práticas sociais, o que impede que a população perceba
conscientemente seus efeitos destrutivos para a sociedade.
Para tentar combater o
problema, o movimento negro brasileiro pressionou o governo e, em 1989,
conseguiu que fosse promulgada a Lei nº 7.716/89, que tornou o racismo crime
inafiançável. No entanto, a criminalização do racismo como prática social pela
criação de leis tem se revelado insuficiente. Dificilmente os casos denunciados
resultam na punição do agressor. Desde cedo, se aprende a discriminar discreta
e silenciosamente, sem deixar provas. E sem provas não há punição.
Os casos de racismo no futebol
dão ideia da extensão do problema. Nesse esporte, o Brasil destaca-se pelos
títulos mundiais e por revelar alguns dos melhores jogadores negros do mundo.
Mesmo assim, casos de racismo se repetem constantemente nos gramados nacionais
e internacionais. E não ocorrem apenas no esporte, mas também nos diferentes
espaços e nas relações sociais.
0 Comments: