domingo, 31 de maio de 2020

Tipos de Dominação Legítimas

Quando você pensa em politica, o que vem a sua cabeça? Provavelmente algo relacionado ao governo as pessoas que administram a cidade, o estado ou o país. Você talvez pense nas eleições, em candidatos, no voto. E talvez tenha uma opinião desfavorável sobre a politica: muita gente, quando ouve falar em politica, logo pensa em corrupção.


Mas você já pensou em quantas coisas boas na sua vida foram conseguidas por lutas politicas? Por exemplo, hoje você pode postar na internet uma frase como "Odeio todos os políticos, o governo é corrupto". No Brasil, há menos de trinta anos, quem criticasse o governo desse jeito poderia ser preso, torturado e até morto. Isso só deixou de ser assim graças a um movimento politico forte que mudou a forma de o país ser governado. E quem achar que outros problemas graves do Brasil podem ser resolvidos sem politica está seriamente iludido

A Ciência Politica ajuda a entender como funcionam o governo, as leis, os partidos, e tudo aquilo que influencia ou regulamenta a vida de cidadãos como você e seus colegas.

 

POLITICA E PODER

O conceito fundamental da Ciência Politica e o conceito de poder. A definição do sociólogo alemão Max Weber mostra que o centro da atividade politica e a busca pelo poder. Segundo Weber, a política é a luta por participar do poder ou influenciar sua repartição, seja em um Estado, seja entre os grupos de pessoas dentro de um Estado, seja na relação entre Estados. Mas o que, afinal, e o poder? Você já deve ter alguma ideia do que significa poder. Tem poder quem manda quem é capaz de impor sua vontade sobre a dos outros.

 


Na foto acima, de 1968, um cidadão da antiga Tchecoslováquia (pais que se dividiu nas repúblicas Tcheca e Eslováquia) tenta impedir o avanço de um tanque do exército soviético. Entre 1945 e 1989, a União Soviética Impôs pela força governos comunistas em vários países da Europa. O cidadão da foto não conseguiu Impedir a invasão.

Se um assaltante o ameaça com uma arma e lhe ordena que entregue a ele seu dinheiro, você provavelmente obedecerá, mesmo contra sua vontade Quando isso acontece, ele está exercendo do poder sobre você. Se a policia interrompe a assalto e ordena ao ladrão que se renda, ele provavelmente vai obedecer, mesmo não tendo nenhuma vontade de ir preso. Quando isso acontece, os policiais exercem poder sobre o ladrão. Essas são formas de poder razoável mente simples: alguém obriga outro al quem a fazer alguma coisa por meio de ameaça de violência física.

Mas o poder com base apenas na ameaça de violência e frágil. O ladrão só consegue mandar no pequeno numero de pessoas que mantem sob a mira de sua arma. Para o poder se estabelecer sobre um grande número de pessoas por um tempo razoável, é preciso que essas pessoas obedeçam mesmo quando não se veem explicitamente ameaçadas de violência Imagine, por exemplo, se o governo precisasse manter um policial armado acompanhando cada um de nós, o tempo todo, para que cumpríssemos a lei. Dificilmente um governo como esse conseguiria se manter por muito tempo.

Weber chamou a probabilidade de encontrar obediência em um grupo de pessoas de dominação. A dominação, para durar, precisa ser legítima: isto é, precisa, de alguma forma, convencer as pessoas de que é certo obedecer. Elas podem se convencer por motivos diferentes, Weber identificou três principais tipos de dominação legítima. Eles não são os únicos possíveis e, na prática, quase sempre se misturam em um processo de dominação. Os três tipos de dominação legitima, segundo Weber, são os seguintes:

· Dominação tradicional: é a dominação que se baseia no costume - quando se obedece porque "sempre foi assim" - ou em um hábito tão forte que nos pareceria estranho nos desviarmos dele. Muitas monarquias, por exemplo, foram e são legitimadas pela tradição: obedecer ao rei e a sua família já se tornou parte da maneira de viver de determinada sociedade, e os súditos achariam estranho viver de outro jeito. Em algumas religiões, é comum que os fiéis obedeçam ao líder espiritual porque esse comportamento já se tornou parte importante das crenças daquela religião.

Rei Abdullah, da Arábia Saudita, um exemplo de líder que tenta se legitimar como representante das tradições do país (no caso, as tradições religiosas).

Na Arábia Saudita, o rei é chamado de "Guardião das Duas Mesquitas Sagradas" (Meca e Medina, locais sagrados para a religião islâmica). O próprio nome do país deriva do nome de sua família, Saud. Foto de 2012.



·  Dominação racional-legal: é a dominação que se baseia na crença de que correto obedecer à lei. Não porque a lei seja inspirada por ordem ou crença divina, ou porque se concorde com todos os detalhes de todas as leis, ou porque obedecer seja sempre do seu interesse, mas porque a lei deve ser cumprida. Para entender o que é a crença na lei, basta pensar no que consideramos, na sociedade moderna, um bom funcionário público. Um bom funcionário público deve ter conseguido seu emprego por competência técnica (demonstra da em concurso público), deve sempre seguir o que diz a lei: e deve aplicá-la igualmente a todos os cidadãos, sejam eles brancos, sejam negros, ricos ou pobres, da mesma igreja do funcionário ou não, do mesmo partido politico do funcionário ou não. Esse funcionário público corresponde ao ideal da dominação racional-legal.

 Funcionário público

Funcionário do Estado. Os funcionários públicos não podem ser indicados por alguém para os cargos que ocupam (exceto nos chamados cargos de confiança). Eles são aceitos no cargo após aprovação em um concurso público, no qual os candidatos são avaliados anonimamente O objetivo disso é garantir que a seleção considere a competência do candidato para a função, e não suas relações pessoais. São funcionários públicos, por exemplo, os juízes e os médicos dos hospitais públicos.


·  Dominação carismática: é a dominação que se baseia na crença de que o líder político possui qualidades excepcionais, dons extraordinários. Os liderados podem acreditar que o líder é inspirado por Deus, ou que é excepcionalmente capaz de compreender o verdadeiro destino da nação. É possível, a propósito, que os liderados estejam enganados - ou seja, que o líder não tenha nenhuma dessas qualidades. Mas, enquanto o líder convencer de que as tem, ele exerce poder sobre os liderados, muitas vezes inspirando-os a fazer coisas que normalmente não fariam.


O carisma pode influenciar multidões em favor das mu diversas causas. Na foto acima, de 1939, o ditador Adolf Hitler, que governou a Alemanha entre 1933 e 1945. Hitler incitou o ódio contra minorias, e seu governo causou a morte de milhões de pessoas. Na época, na Alemanha, a vontade do Führer ['líder, em alemão] valia muito mais do que a lei. Na foto ao lado, o pasto batista norte-americano Martin Luther King, em foto de 1965. King inspirou milhões de negros nos Estados Unidos a combater as leis racistas do sul do país e buscar a igualdade.

 

 VOCÊ JÁ PENSOU NISTO?

 

A quem você obedece? A seus pais, aos professores, a um líder religioso, ao prefeito? Pense nos motivos que o fazem obedecer a cada uma dessas pessoas. A quais delas você obedece por motivos afetivos, a quais porque "e assim que as coisas são", a quais por reconhecer que são competentes em determinada área? Você consideraria que há abuso de poder em algum desses casos? Em caso afirmativo, você deixaria de obedecer?

 

 

Veja como as coisas são mais complexas do que aparentam. Começamos este estudo vendo que o poder e a possibilidade de impor a vontade. Quando concluímos que o poder que é só imposto não consegue se estabelecer por muito tempo, descobrimos que aqueles que obedecem precisam de motivos para obedecer. Esses motivos são muito mais complexos do que o medo da violência: a dominação, para ser bem-sucedida, precisa respeitar as tradições dos dominados, ou precisa oferecer-lhes a inspiração e o entusiasmo que uma grande liderança é capaz de produzir ou precisa garantir a ordem segundo os princípios da lei. Ou talvez precise oferecer as três coisas, ou ainda outras que Weber não listou.

No final da história, os dominados não se limitam a obedecer, eles têm valores, expectativas e exigências que impõem limites a quem exerce o poder. O político que resolver ignorar completamente a questão "Afinal, por que essas pessoas me obedecem?", corre o risco de descobrir que, com o tempo, elas podem parar de obedecer.

 


sexta-feira, 29 de maio de 2020

A Carta dos Índios



 PARA REFLETIR

 

Trecho da carta dos índios aos governos dos Estados da Vírginia e de Maryland

 Certa vez, os governos dos Estados da Virgínia e de Maryland, nos Estados Unidos, sugeriram aos índios que enviassem alguns de seus jovens para estudar nas escolas dos brancos. Na carta-resposta, os indígenas agradeciam, recusando. Eis um trecho da carta dos indígenas.

(...) Nós estamos convencidos, portanto, de que os senhores desejam o nosso bem e agradecemos de todo coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa.

(...) Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportar o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo ou construir uma cabana, e falavam nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.

Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não posamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão concordamos que os nobres senhores de Virgínia nos enviem alguns de seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos deles, homens.

 

 


Raça, racismo e etnia


Ao longo da história da humanidade, foram frequentes os encontros entre grupos sociais cujas diferenças eram percebidas principalmente pelos traços físicos. Essas características passaram a servir, então, como critério para classificar os grupos humanos.

A partir do século XV, os europeus lançaram-se à exploração do mundo. Nessa época, as diferenças entre os grupos humanos com base no fenótipo - conceito da Biologia que define o conjunto de características físicas de um ser vivo -, associadas aos interesses econômicos e políticos das elites das metrópoles, serviram como critério para justificar a exploração das populações nativas da Ásia, da África, da Oceania e das Américas pelos colonizadores europeus (espanhóis, ingleses, franceses, portugueses e outros). Por apresentarem características físicas e culturais diferentes, os nativos passaram a ser considerados inferiores e, em alguns casos, desprovidos de humanidade.
Nesse contexto, as diferenças físicas foram utilizadas como rótulo qualificativo e indicativo de suposição de superioridade e de inferioridade, diferenciando colonizadores e colonizados sob a premissa do etnocentrismo. 

Estavam criadas as condições para especular sobre as diferenças com base na cor da pele, inicialmente atribuída à maior ou menor intensidade da luz solar. No século XVIII, a cor da pele foi transformada no principal critério classificatório das hierarquias raciais produzidas pelas Ciências Naturais. Controlado pelos interesses econômicos e políticos das elites metropolitanas europeias, o processo de colonização buscou subordinar as populações nativas da Ásia, da África, da Oceania e das Américas explorando ao extremo seus recursos humanos e naturais. Os europeus justificaram suas ações com a ideia de que esses povos eram inferiores porque possuíam características físicas e culturais diferentes. Construía-se, assim, uma forma de agir perante o outro que conhecemos como racismo e que envolve toda ação preconceituosa, discriminatória ou segregacionista perpetrada contra quaisquer indivíduos e grupos por causa de sua origem étnica ou racial.

Como teoria, tentava-se justificar uma superioridade europeia com base em supostos atributos herdados biologicamente. Tratava-se de uma visão de mundo carregada de ideologias (pensadas como falsa consciência da realidade) que escondiam um fato não confessado: a relação de poder e dominação de determinados grupos sobre outros.
A ideologia do racismo baseou-se em estudos do comportamento humano que procuraram explicar as diferenças sociais e culturais apoiando-se nos conceitos das Ciências Naturais. Tais estudos influenciaram a criação de teorias raciais e eugênicas que buscavam justificar a ideia da existência de povos “inferiores” e “superiores”. Essas teorias ainda estão na base do pensamento que sustenta o racismo. 

Teorias raciais e eugênicas
Entre final do século XIX e início do século XX, a ideia de superioridade entre os grupos étnicos e raciais, isto é, de que existem grupos humanos fortes e fracos segundo características físicas herdadas biologicamente, foi associada a traços intelectuais e morais. Essa soma de suposições deu suporte para a difusão de argumentos pretensamente científicos que justificaram ações políticas de controle social exercidas pelas elites dominantes sobre as populações dominadas, negras e indígenas.  
Eugenia
Termo desenvolvido pelo inglês Francis Galton (1822-1911) que significa “bem-nascido”. Propõe o melhoramento da espécie humana pela reprodução de indivíduos com características desejáveis.
Para estudiosos da época, o termo “raça” definia um grupo humano com características próprias - físicas, psicológicas e culturais -, transmitidas pelos antepassados. De acordo com essa visão, as diferenças humanas são determinadas essencialmente pelo fator biológico, e os indivíduos são herdeiros dos traços físicos e das aptidões de seu grupo social de nascimento.
O chamado racismo científico e a tese da eugenia, bem como seus defensores, surgiram nesse contexto. Entre os representantes dessa linha de pensamento europeu que tiveram forte influência no Brasil estão o ensaísta francês Arthur de Gabineau (1816-1882) e o médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909).
A ilustração, originalmente publicada em 1854 no livro Types of mankind (Tipos de humanidade), de Josiah Nott e George Gliddon, justifica a diferença evolutiva entre os europeus (representados pela escultura grega de Apolo) e os africanos, comparados aos chimpanzés.

 Segundo Gobineau, existiriam três raças puras: branca, negra e amarela. As demais variações seriam consequência de miscigenação entre elas. Seu principal argumento era que cada raça apresentava características físicas, psicológicas e sociais próprias, e a mistura entre elas resultaria na degeneração daquela considerada mais desenvolvida (a branca), embora ajudasse as outras raças inferiores (negra e amarela) a se desenvolver. Quanto mais uma nação fosse miscigenada, como o Brasil, maior seria o grau de degeneração observado. Com base nessa interpretação, alguns pensadores passaram a defender o “branqueamento” da população brasileira como solução para o desenvolvimento do país, nos moldes da sociedade europeia. Entre eles destacam-se o médico e antropólogo Nina Rodrigues e o jurista e historiador Oliveira Vianna.
Para Cesare Lombroso, a diferença entre uma pessoa honesta e uma pessoa criminosa estaria relacionada a aspectos físicos. Seus estudos procuraram no organismo humano características próprias dos criminosos. As ideias de Lombroso tiveram grande repercussão em diversas áreas do conhecimento, influenciando pesquisadores na Europa e na América Latina.
A difusão dessas ideias contribuiu para a efetivação do racismo como ação política e ideológica. O critério racial passou a ser elemento explicativo de diferenças de aptidão, de modos de viver e de ocorrências de tendências criminosas. A combinação das características físicas herdadas por uma pessoa com certos traços de sua personalidade, inteligência ou cultura indicaria a existência de raças humanas naturalmente inferiores ou superiores a outras. Essa falsa ideia levou muitos a acreditarem num determinismo dos caracteres biológicos, herdados da natureza, sobre os traços da personalidade e da cultura.
O racismo supõe a existência de “raças” humanas e a caracterização biogenética de fenômenos puramente sociais e culturais. Além disso, também é uma modalidade de dominação ou uma maneira de justificar a dominação de um grupo sobre outros inspirada nas diferenças fenotípicas da espécie humana.
A ideologia racial teve grande sucesso no Brasil do século XIX. A ideia da superioridade dos brancos europeus foi bem-aceita por parte dos intelectuais da época, especialmente médicos, advogados e políticos, os quais desejavam construir um país à semelhança da Europa. O movimento abolicionista e mesmo a abolição da escravidão, em 1888, não foram capazes de alterar essa ideia. Os negros e mestiços se viram, em sua maioria, relegados a posições subalternas na sociedade brasileira, e suas práticas culturais, como o samba, a capoeira e o candomblé, foram muitas vezes criminalizadas.
Como consequência os grupos dominantes implementaram um conjunto de políticas de imigração que favoreciam a mão de obra europeia com instrumentos legais (leis, decretos etc.). Além das razões econômicas, buscou-se estimular a miscigenação da população brasileira com a europeia para promover o “branqueamento” da sociedade.
Para aqueles que pensavam assim naquela época, o negro e o mestiço representariam o atraso da sociedade brasileira rumo ao progresso e à modernidade, bem como um empecilho para a construção da identidade nacional.


A teoria da democracia racial

A partir da década de 1930, no contexto de construção de uma identidade nacional que valorizasse a interação social entre as diferentes etnias formadoras da população brasileira, desenvolveu-se uma nova perspectiva acerca da questão racial. Tendo como expoente Gilberto Freyre, firmou-se a noção de que o Brasil seria uma sociedade na qual, em vez da discriminação e da segregação raciais absolutas, haveria miscigenação, o que possibilitaria o convívio harmonioso entre as diferentes “raças”. Para a chamada democracia racial, o fenômeno da mestiçagem era consequência da convivência “salutar” e “democrática” entre pessoas de “raças” diferentes. 



 Quem escreveu sobre isso

Gilberto Freyre

Gilberto Freyre (1900-1987), sociólogo, antropólogo e historiador pernambucano, é considerado um dos mais importantes pesquisadores da cultura e da identidade nacionais no Brasil. A principal contribuição de Freyre para a discussão sobre as relações raciais é a interpretação do Brasil com base nos aspectos positivos da miscigenação, rompendo com as teorias racistas que predominaram no século XIX.

Gilberto Freyre foi um dos principais estudiosos das relações sociais no Brasil.


Os estudos de Freyre sobre a mestiçagem e sua visão da convivência racial harmoniosa no Brasil provocaram uma revisão das teorias raciais, que condenavam sociedades com grandes contingentes de mestiços, e ofereceram uma visão mais otimista da realidade brasileira: uma nacionalidade marcada pela miscigenação de três raças. Esse olhar despertou o interesse das elites políticas e intelectuais, nacionais e internacionais, em um cenário marcado pela ascensão e queda do nazismo. A partir de 1950, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) passou a financiar estudos sobre o caráter positivo das relações raciais no Brasil, possibilitando novas análises das questões relacionadas à situação do negro e aos preconceitos raciais na vida social brasileira. Freyre não ignorava a dimensão conflituosa das relações entre as matrizes europeia, ameríndia e africana. Contudo, procurou enfatizar o fato de as três terem contribuído para a constituição da identidade nacional brasileira.
A perspectiva positiva de um comportamento racial tolerante no Brasil fortaleceu a crença de que no país não haveria preconceito nem discriminação racial, mas sim oportunidades econômicas e sociais equilibradas para as pessoas de diferentes grupos raciais ou étnicos. O Brasil foi tomado como modelo a ser seguido, quando comparado com outros países em que a segregação era visível social e legalmente. Um dos exemplos que ilustram essa tese foi a promulgação, em 1951, da Lei Federal nº 1.390/51, conhecida como Lei Afonso Arinos, que tornou o racismo contravenção penal no Brasil. O pequeno alcance punitivo dessa lei era reflexo de um pensamento segundo o qual o ato racista não era uma ação disseminada na sociedade, mas apenas uma manifestação individual. Se no Brasil não se percebia o racismo como um problema, não havia por que puni-lo de modo mais severo.

O mito da democracia racial

Essa visão de convívio harmonioso entre as raças foi desconstruída pelos estudos de Florestan Fernandes - que participou das pesquisas financiadas pela Unesco com Roger Bastide -, que redundaram no livro A integração do negro na sociedade de classes. Nessa obra, publicada em 1965, o autor analisa as particularidades do caso brasileiro e afirma ser a democracia racial um mito, uma imagem idealizada, que serve para garantir a manutenção da posição inferior do negro na sociedade brasileira. Como principal argumento, defende que os negros libertos no período pós-abolição não ameaçavam política e socialmente a posição de poder (e os privilégios) dos brancos, sendo desnecessárias medidas formais para promover o distanciamento entre negros e brancos.
Ao longo dos anos 1960 e 1970, inspirado pelos estudos de Florestan Fernandes, o movimento negro brasileiro assumiu como bandeira política a luta contra a teoria da democracia racial. Ressalte-se ainda que esse movimento sofreu influência da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 1950 e 1960.

 Quem escreveu sobre isso


Florestan Fernandes
Florestan Fernandes (1920-1995), sociólogo paulista, publicou em 1965 A integração do negro na sociedade de classes, obra na qual construiu uma crítica sociologicamente fundamentada na teoria da democracia racial brasileira. Professor da USP cassado em 1968 pela ditadura militar, foi deputado federal por dois mandatos (1987-1994). Contribuiu para a construção da teoria sociológica brasileira e participou ativamente dos movimentos sociais pela educação pública.

Florestan Fernandes contribuiu para a teoria social e atuou politicamente em defesa da democracia


A partir de então, passou a fundamentar sua ação nas conclusões sociológicas de Fernandes sobre as condições de desigualdades sociais entre negros e brancos no Brasil.

 Saiba mais

A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos

Ao final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos eram vistos como o modelo de sociedade a ser seguido pelos países capitalistas. Considerada por muitos a terra das oportunidades e da igualdade, a nação escondia relações sociais internas marcadas pelo preconceito e pela discriminação. Essa situação opressiva ficou evidente em 1955, com a repercussão do ato praticado por uma mulher negra, Rosa Parks, ao se recusar a cumprir uma determinação legal do estado do Alabama que obrigava a separação entre brancos e negros a bordo dos ônibus. Presa, seu caso serviu de estopim para o início da luta pelos direitos civis e pela igualdade racial nos Estados Unidos. O movimento culminou com a marcha em Washington, D.C., em 1963, quando cerca de 250 mil pessoas foram acompanhar a aprovação das leis dos direitos civis, que suprimiram as leis segregacionistas em todos os estados do país. Ao entrar em vigor, em 1964, a lei dos direitos civis produziu mudanças estruturais na sociedade estadunidense e permitiu outro olhar sobre o problema do racismo naquele país e no mundo, servindo de base para a luta por igualdade de diversas minorias sociais.



As desvantagens dos negros e mestiços são confirmadas estatisticamente por muitas pesquisas acadêmicas, como se pode observar nos dados sobre a distribuição de renda no Brasil mostrados nas tabelas a seguir. Apesar de representarem a metade da população brasileira, os pretos e pardos constituem 74,2% da população mais pobre do país e apenas 16% da mais rica.
A posição de desvantagem econômica dos negros (pretos e pardos) fica evidente quando notamos que a proporção de negros na população pobre do país é muito superior à de brancos, e, inversamente, que a proporção de negros que compõem a minoria rica do país não chega à quinta parte desta.

População brasileira por raça
População brasileira
Brancos
Pretos e pardos
Amarelos, indígenas e sem declaração
190.755.799
91.051.646
96.795.294
2.908.859

47,7%
50,7%
1,1%
Fonte: IBGE. Censo 2010: resultados gerais de amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
               
Rendimento do trabalho por raça
População com rendimento de trabalho, entre os 10% mais pobres, em relação ao total de pessoas (%)
Branca
Preta
Parda
25,4
9,4
64,8
Com rendimento de trabalho, entre o 1% mais rico, em relação ao total de pessoas (%)
Branca
Preta
Parda
82,5
1,8
14,2
Fonte: IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.

Os pretos e pardos constituem metade da população total, mas representam a grande maioria da população pobre. Some-se a isso o fato de que essa desvantagem econômica ocorre em quase todas as esferas da vida social, como no acesso às oportunidades culturais e educacionais, e no que se refere à participação política. Embora a população negra desempenhe papel importante na vida cultural e na produção de riquezas no Brasil, seu acesso a bens e serviços continua a ser mínimo se comparado ao da população branca.
No caso brasileiro, as populações indígena, afrodescendente e mestiça continuam a ser tratadas de maneira preconceituosa e desigual, confirmando as críticas de Florestan Fernandes ao tratamento dado à questão racial brasileira, bem como as limitações da tese da democracia racial. Contudo, esta última também tem seu valor. Se por um lado a tese de uma miscigenação pacífica e isenta de conflitos pode e deve ser criticada, já que não se confirma na realidade, por outro ela teve e ainda tem papel essencial na crítica às teses eugênicas e de superioridade racial.
Ainda hoje, em um contexto científico no qual o conceito de raças foi abandonado, essas teorias racistas continuam a ser defendidas por diversos grupos sociais, como os neonazistas. Cabe lembrar que as obras de Gilberto Freyre foram produzidas em um momento histórico no qual as teorias eugênicas alcançavam seu apogeu, com a ascensão do nazismo na Europa. É certo, porém, admitir que no Brasil o racismo está bastante enraizado nas práticas sociais, o que impede que a população perceba conscientemente seus efeitos destrutivos para a sociedade.
Para tentar combater o problema, o movimento negro brasileiro pressionou o governo e, em 1989, conseguiu que fosse promulgada a Lei nº 7.716/89, que tornou o racismo crime inafiançável. No entanto, a criminalização do racismo como prática social pela criação de leis tem se revelado insuficiente. Dificilmente os casos denunciados resultam na punição do agressor. Desde cedo, se aprende a discriminar discreta e silenciosamente, sem deixar provas. E sem provas não há punição.
Os casos de racismo no futebol dão ideia da extensão do problema. Nesse esporte, o Brasil destaca-se pelos títulos mundiais e por revelar alguns dos melhores jogadores negros do mundo. Mesmo assim, casos de racismo se repetem constantemente nos gramados nacionais e internacionais. E não ocorrem apenas no esporte, mas também nos diferentes espaços e nas relações sociais.

Faixa contra o racismo durante partida entre Vasco e Flamengo, no Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ, 2014). Clubes, jogadores e federações esportivas têm procurado conscientizar os torcedores, condenando o racismo no esporte.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Fundamentos Econômicos da Sociedade


Visão geral sobre o processo de produção
Quando vamos a um supermercado e compramos gêneros alimentícios, bebidas, calçados, material de limpeza, eletrodomésticos, etc., estamos comprando bens. Da mesma forma, quando pagamos a passagem de ônibus ou uma consulta médica, estamos pagando um serviço.
Portanto, bens são todas as coisas palpáveis, concretas, e que são produzidas para satisfazer as necessidades das pessoas. Já uma consulta médica, uma aula, a entrega de um jornal, são exemplos de serviços.

Bens e serviços existem para satisfazer as necessidades dos indivíduos. E resultam de algum tipo de transformação dos recursos da natureza pelos processos de produção.

Produção, distribuição e consumo de bens e serviços: a vida econômica da sociedade
Podemos dizer que o ser humano com o seu trabalho produz bens e serviços. Ao viver em sociedade, as pessoas participam diretamente da produção, tendo como principais atividades econômicas a produção, a distribuição (circulação) e o consumo de bens e serviços. Assim, o conjunto de indivíduos que participa da vida econômica de uma nação é o conjunto de indivíduos que participa da produção, da distribuição e do consumo de bens e serviços.
Quando os operários estão trabalhando, eles estão ajudando a produzir; quando, com o salário que recebem, compram algo, estão participando da distribuição, pois estão comprando bens e serviços. E quando consomem os bens e serviços que adquirem, participam da atividade econômica de consumo de bens e serviços.


Considerando esses três elementos, é óbvio que para que haja distribuição e consumo de algum bem ou serviço é necessário que tenha havido anteriormente a produção desse bem ou serviço. Isso torna a produção a atividade econômica mais importante de um país.
Tomemos, por exemplo, o processo produtivo que ocorre em uma indústria de móveis: a árvore (matéria bruta) é derrubada; as toras de madeira (matéria-prima) vêm para a indústria de móveis. Aí chegando, sofrem a ação transformadora das máquinas e equipamentos e do trabalho dos operários, resultando desse processo um novo bem – uma cama, uma mesa, uma cadeira -, que será colocado à venda.
Produção é a transformação da natureza da qual resultam bens que vão satisfazer as necessidades dos indivíduos. Portanto, produzir uma nova combinação aos elementos da natureza.

Transformando matéria-prima em bens
Vejamos outro exemplo, que nos permitirá compreender de forma mais detalhada o processo produtivo. Ao trabalhar, a costureira transforma o corte de tecido de linho - que é obtido de matéria-prima vegetal – numa roupa: para isso ela utiliza linhas, botões, colchetes, etc. E também tesouras, agulhas e máquina de costura. Além disso, para poder trabalhar, ela gasta energia elétrica para a iluminação da casa e para o funcionamento da máquina de costura elétrica.
Como vemos, um dos elementos que intervêm no processo de produção é o trabalho.
Trabalho é a atividade realizada pela pessoa que, utilizando os instrumentos de produção, transforma a matéria-prima num bem.

Energia física e mental: a força de trabalho
Continuando com o exemplo da costureira, ao trabalhar ela gasta energia física e mental. Essa energia gasta durante o processo de trabalho é chamada força de trabalho.
Da mesma forma, os operários em sua jornada de trabalho, professores e alunos em suas atividades escolares ou acadêmicas, médicos, cientistas, domésticos, artistas, todos empregam sua força de trabalho na realização de suas tarefas.

Processo de produção: um resumo
Resumindo: o processo de produção é composto de três elementos principais associados:
  •       Trabalho;
  •        Matéria-prima;
  •        Instrumentos de produção.

Vamos analisá-los melhor.

Trabalho
Toda atividade desenvolvida pelo ser humano – seja ela física ou mental – é considerada trabalho. Dele resultam bens e serviços. É trabalho tanto a atividade do operário de uma indústria como a do arquiteto que projeta os bens a serem produzidos por essa indústria.
Assim, tanto a atividade manual como a atividade intelectual são trabalho, desde que tenham como resultado a obtenção de bens e serviços.

Manual e intelectual: uma combinação
Deve-se considerar que toda atividade manual implica uma atividade mental. Algumas profissões exigem do trabalhador uma atividade intelectual maior (no exemplo anterior, o arquiteto) do que outras (o operário). Todo trabalho é sempre uma combinação desses dois tipos de atividade – manual e intelectual. O trabalho de um operário é mais manual que intelectual ou, em alguns casos, quase exclusivamente manual; ainda assim, exige um mínimo de esforço mental. O trabalho do arquiteto é mais intelectual que manual – a concepção de uma forma no espaço -, mas, ainda assim, a sua atividade tem um aspecto manual, seja no manuseio de seus instrumentos de trabalho, seja na passagem da concepção do projeto para o papel.
Então, não existe trabalho exclusivamente manual ou trabalho exclusivamente intelectual, mas, sim, trabalho predominantemente manual ou predominantemente intelectual.
O trabalho executado por um desenhista industrial exige uma aprendizagem anterior, um certo nível de aprendizagem anterior: ele é capaz de executá-lo por imitação.

Uma classificação do trabalho
Quanto à execução, o trabalho pode ser classificado conforme o grau de capacidade exigido das pessoas que o exercem. Assim, temos:
  • Trabalho qualificado – não pode ser realizado sem um grau de aprendizagem: o trabalho de um torneiro mecânico, por exemplo, enquadra-se nessa categoria;
  • Trabalho não qualificado – pode ser realizado praticamente sem aprendizagem; por exemplo, o trabalho de um servente de pedreiro.
O trabalho predominantemente intelectual é em geral qualificado.
É interessante notar que a essa classificação são atribuídos, conforme o grau de capacitação exigido pelas tarefas a cumprir. Analisando anúncios de emprego podemos avaliar as vantagens salariais de um torneiro ou de um instrumentista – cujas funções exigem um aprendizado prévio – em relação a um operário da construção civil não especializado, por exemplo.

Matéria-prima
Os elementos que, no processo de produção, são transformados para constituírem o bem final são chamados de matéria-prima.
No exemplo da costureira, suas matérias-primas são o tecido, a linha, os botões, os colchetes.
Todos esses elementos passam a constituir a roupa, de uma maneira ou de outra. Já para as indústrias desses objetos, a matéria-prima está na natureza: o linho vegetal, o algodão, a seda, o plástico, o metal, etc.
Antes de se transformar em matérias-primas, os elementos encontravam-se na natureza sob a forma de recursos naturais.

Recursos naturais
Os seres humanos, visando obter os bens e serviços de que necessitam, utilizam-se de recursos como o solo (para a agricultura e a pecuária), as rochas (para a mineração) e os rios e quedas-d’água (para a navegação e a produção de energia elétrica).
 

Instrumentos de produção

Todas as coisas que direta ou indiretamente nos permitem transformar a matéria-prima num bem são chamadas de instrumentos de produção.

Os instrumentos de produção que nos permitem transformar diretamente a matéria-prima são as ferramentas de trabalho, os equipamentos e as máquinas. No exemplo da costureira, esses instrumentos são a tesoura, a agulha e a máquina de costura.

Os instrumentos de produção que atuam de forma indireta – mas não menos necessária – são o local de trabalho, as condições físicas necessárias, como iluminação, ventilação, etc.

Assim, instrumento de produção é todo bem utilizado pelo ser humano na produção de outros bens e serviços.

Os seres humanos recorrem aos instrumentos de produção na sua atividade produtiva, pois dessa forma obtêm maior eficiência no seu trabalho.

 

Máquinas e equipamentos: os meios de produção

Como vimos, sem matéria-prima e sem instrumentos de produção não se pode produzir nada. Eles são os meios materiais para realizar qualquer tipo de trabalho. Por isso, são considerados meios de produção.

Portanto, são meios de produção todos os objetos materiais que intervêm no processo produtivo.

Retomemos o exemplo de uma indústria de móveis. Nela utilizam-se: trabalho (o esforço físico e intelectual dos trabalhadores); matéria-prima; máquinas e equipamentos (instrumentos de produção). A matéria-prima e os instrumentos de produção constituem os meios de produção.

 

Trabalho e meio de produção: as forças produtivas

Toda empresa combina em seu processo produtivo o trabalho e os meios de produção. Esses elementos encontram-se presentes tanto no trabalho realizado pela costureira como no trabalho realizado em uma grande indústria moderna.

Sem o trabalho humano nada pode ser produzido; e sem os meios de produção os seres humanos não podem trabalhar.

Ao conjunto dos meios de produção mais o trabalho humano, dá-se o nome de forças produtivas. Assim:

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