quarta-feira, 17 de junho de 2020

Saber sobre a astúcia e as manhas da política


Frontispício de Leviatã, de Thomas Hobbes (detalhe). Gravura, 1651. O principal acontecimento político dos séculos XVI e XVII foi a formação dos Estados absolutistas na Europa. Leviatã foi escrito pouco depois do término da guerra civil na Inglaterra (1642-1649). O contexto daquele momento foi comparado, por Thomas Hobbes (1588-1679), ao “estado de natureza” – quando, segundo esse autor, prevalecia a guerra de todos contra todos. Para superar o caos, Hobbes não via outro caminho: para viverem em paz, os indivíduos deveriam ceder sua liberdade natural a um poder central com autoridade absoluta. A figura do Leviatã – monstro marinho de mitologias antigas – foi usada por ele para personificar o Estado. Na ilustração, o traje do Leviatã é formado pelos súditos.

 Até aqui, trouxemos alguns conceitos básicos que nos puseram em contato com pelo menos duas das disciplinas que compõem tradicionalmente as Ciências Sociais. Diferenciação social e cultura podem ser consideradas conceitos motivadores da construção da Sociologia e da Antropologia, respectivamente. Falaremos agora de mais uma área importante para a reflexão dos cientistas sociais: o saber relacionado ao poder que indivíduos ou grupos exercem sobre outros indivíduos e outros grupos – a Ciência Política.

“Poder é a capacidade de uma pessoa ou de um grupo de pessoas de impor sua vontade a outras.” Esta afirmação é de Max Weber (1864-1820), cientista social alemão, e nos dá uma pista para trazermos outro tipo de investimento intelectual que também integra as Ciências Sociais. Se alguém ou algum grupo impõe sua vontade aos outros, o que resta aos demais? Obedecer? Não obedecer? Negociar? Rebelar-se? Manter-se apático, indiferente? Tentar convencê-lo do contrário? Manifestar sua posição ou desistir de sua convicção? Mudar a situação conquistando o lugar de quem está mandando? Os que têm poder estão falando em seu nome ou em nome de alguém? Eles são poderosos porque têm força para mandar ou porque foram capazes de convencer os outros de que estão no lugar certo? Veja quantas situações são possíveis quando estamos diante do fenômeno da política. Antes, porém, recuperemos o significado dessa palavra tão importante e de uso tão variado em nosso cotidiano.

A palavra política vem do grego politikos, “relativo ao governo de uma cidade, de um Estado”. A política se exercia na pólis, a cidade-Estado grega, aquele espaço fechado onde, nas civilizações antigas, decidia-se a vida da sociedade. Portanto, a origem da palavra já veio carregada de significados porque dizia respeito ao Estado e também ao cidadão. Indicava não só os procedimentos de governar, de organizar a vida dos cidadãos, como também a forma de expressar o ponto de vista, defender seus interesses e organizar a comunidade urbana daqueles considerados cidadãos (e não eram todos). É por essa razão que o termo diz respeito ao ato de governar, de exercer o poder, de conquistar, e também de participar, concordar, resistir ou lutar. São gestos, decisões, movimentos dirigidos para o exercício do poder.

Veja que a política implica muitas noções e se vale de conceitos fundamentais. O poder é um deles, mas a maneira como os cidadãos fazem suas demandas chegarem aos que governam é outro. Como fazer para que os que têm o poder de governar saibam dos desejos e aspirações dos que não estão no governo? De que maneira aqueles que decidem a vida em sociedade podem saber das necessidades dos cidadãos? Como se forma o governo? Que relação tem o governo com a sociedade por ele governada? Quem diz ao governo o que e como fazer? Os “governos governam” em todas as partes da mesma maneira? Os indivíduos de uma sociedade respondem de forma semelhante a todos os governos?

As perguntas que o exercício da política suscita trouxeram para as Ciências Sociais um campo repleto de possibilidades. Alguns governos são fruto da vontade do povo, expressa nas urnas em processos eleitorais livres. Outros decorrem da força de determinado grupo sobre a maioria, e não consideram o voto condição para sua existência. Há também os que recebem o poder como herança (a exemplo das monarquias, em que os critérios de sangue definem quem são os sucessores do monarca). E há ainda aqueles que combinam a figura do rei com a de um primeiro-ministro – o que executa as atividades do governo. A Ciência Política se interessa pelo estudo do exercício do poder em suas variadas formas de manifestação e também em entender o movimento da sociedade para fazer valer sua vontade diante do Estado. Empenha-se ainda em explicar o funcionamento das instituições políticas, como os partidos políticos.

 

Tempos modernos e a nova ordem política

Um dos grandes nomes, sempre mencionado quando se trata da Ciência Política, é o de Nicolau Maquiavel (1469-1527), o italiano de Florença, que viveu no período do Renascimento. Em sua obra mais conhecida, O príncipe, escrita em 1513, e publicada postumamente em 1532, Maquiavel faz recomendações precisas ao governante. O livro é considerado um receituário de como governar, controlar os conflitos, lidar com os inimigos, conquistar espaços, conceder benefícios e definir punições. Um dos grandes pontos levantados por Maquiavel – o que conferiu a ele o símbolo de moderno – foi a defesa intransigente da separação entre a política e a religião. Dever-se-ia atribuir ao Estado e à sociedade o exercício da política. A Igreja cuidaria da formação religiosa, da orientação dos fiéis ao caminho da salvação ou ao aperfeiçoamento espiritual. Do mundo terreno, cuidam os homens; do mundo espiritual, da alma, cuida a Igreja. Não se tratava de pouca coisa se lembrarmos que, na tradição das monarquias, as autoridades religiosa e política se fundiam. E no caso da Itália ainda não unificada, sobretudo, os Estados Pontifícios, segundo Maquiavel, competiam com o Estado político, dificultando a formação de um Estado Nacional unificado.

A obra de Maquiavel é uma expressão fiel do tempo em que foi produzida, considerada inovadora por provocar o rompimento com a maneira tradicional de tratar os fenômenos históricos e políticos. Os fatos deveriam ser analisados como se apresentavam concretamente, como produtos das ações humanas reais, desenvolvidas em experiências históricas específicas. Foi o primeiro a propor uma ética para a política diferente daquela do ensinamento religioso. A finalidade da política seria a manutenção do Estado. Tudo, portanto, que dissesse respeito ao funcionamento do Estado – ato de governar, de obedecer, de administrar conflitos, de se representar – interessava ao conhecimento da política.

Nos séculos seguintes a Maquiavel – XVII e XVIII –, muitos outros pensadores ampliaram a advertência feita por ele. Como construir uma nova ordem social que não fosse submetida aos costumes que vigoravam e ao poder exclusivo de um monarca? Os pensadores desse século, também chamados de contratualistas, estavam preocupados com noções que hoje nos são caras. Noções de direitos, de participação dos cidadãos na vida política, nas questões que afetavam suas vidas, de limites ao poder do rei foram matéria de estudo e de outros clássicos que são referência no campo de conhecimento da Ciência Política. Fortalecer o Parlamento e definir regras para a sucessão dos governantes foram conquistas de uma famosa revolução ocorrida na Inglaterra em 1688-1689, a Revolução Gloriosa, também conhecida como “Revolução sem sangue”. Foi dela que resultou um documento fundamental que viria a marcar os tempos modernos: a Bill of Rights (Declaração de Direitos).

O que aprendemos com esses exemplos? Nada é natural ou espontâneo quando pensamos na sociedade e no exercício da política. Os direitos são conquistados, disputados, negociados, muitas vezes abolidos, negados, desrespeitados. Os ensinamentos da Ciência Política nos ajudam a entender como esses movimentos de sucesso, fracasso e estabilidade, e também de retrocessos, são parte de épocas e situações sociais específicas.

 

J. Cary e Samuel Wale. A Declaração de Direitos ratificada pelo rei William e pela rainha Mary antes da coroação, séc. XVIII. Gravura, 30,2 × 21,6 cm.

   

 

Teorias Contratualistas ou Teorias do Contrato Social

 

Como explicar a origem da ordem social e da política? De que modo indivíduos isolados passam a se perceber como participantes da mesma sociedade, do mesmo grupo ou da mesma organização política? Essas perguntas são antigas e tiveram respostas fundamentadas em diversos campos, como Religião, Mitologia, Filosofia e Ciência. Uma das maneiras de responder a essas questões foi dada por uma corrente filosófica que surgiu na Antiguidade e atravessou o Período Medieval – o Contratualismo. Ainda que tivessem origem remota, foi na modernidade que as teorias contratualistas contribuíram para o desenvolvimento da Ciência Política – ciência que estuda a organização política das sociedades.

A ideia central do pensamento contratualista é que a ordem política surge a partir de um acordo estabelecido entre os indivíduos, a fim de evitar mais danos ou garantir a paz. Esse acordo seria o Contrato Social. Isso significa que existiria, ainda que hipoteticamente, um tipo de vida “a-social” ou apolítica, anterior ao contrato – momento definido pelos contratualistas como estado de natureza. Com o contrato, o estado de natureza desaparece e surge a sociedade civil (civitas, “Estado”, “organização política”).

As guerras religiosas decorrentes da Reforma e Contrarreforma, a emergência do capitalismo e da burguesia, e o surgimento da ciência moderna tiveram implicações no campo político no Período Moderno. As transformações sociais, culturais e econômicas modificaram a ordem social, que deixava de ser percebida como resultado da vontade divina e passava a ser compreendida como construção humana. Assim, o indivíduo passou a ser o protagonista da história. Se nos modelos políticos medievais a soberania era justificada pela religião e pela tradição, no contexto moderno, a soberania (do monarca e, posteriormente, do povo) passou a ser justificada pelo acordo entre indivíduos.

O primeiro contratualista moderno foi o inglês Thomas Hobbes (1588-1679), mas outros nomes ligados ao Iluminismo fizeram parte dessa corrente de pensamento, como o inglês John Locke (1632-1704) e o genebriano Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ambos pensaram o mundo social de forma diferente de Hobbes, mas os três compartilhavam um argumento comum: a vida social, para existir como tal, necessita de um acordo (que pode ser redefinido muitas vezes e de muitas maneiras) que estabelece os princípios básicos dessa sociedade. Os contratualistas trabalhavam com três elementos: o estado de natureza, o contrato e o resultado do contrato, ou seja, os fundamentos das leis que deveriam orientar a constituição do Estado. A forma como cada pensador entendeu cada um desses aspectos (estado de natureza, contrato e fundamentos das leis) deu origem a teorias diferentes.

 


Bibliografia

Tempos modernos, tempos de sociologia: ensino médio: volume único / Helena Bomeny... [et al.] (coordenação). — 2. ed. — São Paulo: Editora do Brasil, 2013.

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